sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Discurso proferido por Sua Excelência o Presidente da República, na sessão Solene de Abertura do Ano Judicial, 05 de Outubro de 2012

Excelentíssimo Senhor Presidente do STJ,
Excelentíssima Senhora Presidente do CSMJ,
Excelentíssimo Senhor PGR,
Excelentíssimo Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados, 

A 25 de Setembro transacto a Constituição da República completou 20 anos de vida. A sua aprovação e publicação são marcos incontornáveis na história da nação cabo-verdiana.
A Constituição de 92 foi ousada e assumiu valores com frontalidade e coragem, como nunca se vira antes em Cabo Verde. Foi instituída uma república democrática fundada na dignidade da pessoa humana, na liberdade e na igualdade dos homens, valores que se sobrepõem ao próprio Estado.
A Constituição não se limitou a catálogo de direitos, mas também estabeleceu garantias e deveres, preconizando um modelo de homem livre e responsável numa sociedade solidária. Notamos, às vezes, certos discursos e atitudes que parecem querer veicular a ideia segundo a qual a Constituição é filosofia, coisa abstracta, programa e intenção, feita por sonhadores que ignoram a realidade do país.

A Constituição de 1992, com as suas revisões, deu já sobejas provas da sua vitalidade e indispensabilidade e do seu profundo enraizamento na realidade política e social cabo-verdiana. Em todos os momentos da nossa história as soluções normativas adoptadas na Constituição da República mostraram estar à altura dos acontecimentos, com respostas satisfatórias para os problemas e desafios que enfrentámos. E essa é uma razão acrescida para se exigir cada vez com maior rigor o respeito escrupuloso pelas suas normas.

Entre os direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na nossa Constituição encontra-se o acesso à Justiça

Hoje, mais do que nunca, as questões ligadas à Justiça encontram-se na ordem do dia. São conversa normal dos cidadãos e notícia ou comentário nos media. Por mais paradoxal que possa parecer, é provável que este agudo sentimento de necessidade de Justiça não esteja no, essencial, ligado aos debates sobre os constrangimentos de que padece o sector.

Arriscaria a dizer que este sentimento generalizado da grande importância de que a Justiça se reveste para o cidadão comum é um elemento que radica num aprofundamento de uma relação com a Justiça, que sempre existiu entre nós, que, diríamos, impregna a nossa cultura.

O sentido de Justiça, a sua necessidade, é um dos traços marcantes da nossa cultura.


Admito que a importância cada vez maior atribuída ao sector, traduz o aprofundamento, ainda que difuso, da consciência de que ela é, como tenho reiteradamente defendido, um dos esteios do regime democrático, ao lado de uma imprensa independente e de uma sociedade civil consolidada e interveniente.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Ignorar os esforços que têm sido feitos no sentido de melhorar o nosso sistema de Justiça, não seria adequado. Os investimentos em recursos físicos, humanos em equipamentos são visíveis.

Mas independentemente da correcção de tais apreciações não podemos ignorar que a Justiça tem sido alvo de inúmeras críticas. Essa Justiça que tem sido alvo de inúmeras críticas a ponto de ser por muitos apelidada de “calcanhar de Aquiles” das sociedades modernas.

Não raras vezes assistimos a desabafos de cidadãos, manifestando o seu descontentamento pelo facto do seu processo judicial não andar, ou por causa da decisão judicial que manda restituir à liberdade o individuo que, na sua visão, dá todas as mostras de ter cometido o crime de que vem acusado. Por outro lado, escutamos, amiúde, lamentações dos agentes de segurança e ordem pública face à não condenação do indivíduo que levaram às barras do tribunal e foi posto em liberdade.

Mas, apesar de tudo, hoje devemos estar todos orgulhosos do percurso que fizemos até aqui, desde a Independência a este ano de 2012. Com muitos sacrifícios e perseverança conseguimos construir um sistema de justiça muito mais eficiente do que aquele que existia na época colonial. Há quem pense de forma contrária, que a justiça funcionava plenamente na época colonial, mas ignorando um facto essencial: o acesso. O acesso à ajustiça era muito limitado, pela escassez dos tribunais, pela quantidade de magistrados, pela gritante insuficiência dos recursos e pela desmesurada ausência de informação jurídica. Não se mostra minimamente comparável o número de pessoas que procurava a justiça antes da Independência Nacional com o que se passa nos nossos dias. Se é verdade que se pode dizer que o grau de litigiosidade é hoje maior, também não é menos certo é que uma justiça mais próxima dos cidadãos num mundo mais informado, incentiva a procura.

Todos, de uma forma ou outra, procuram hoje a justiça. E hoje o acesso à justiça, apesar das dificuldades, é quantitativa e qualitativamente várias vezes superior. Poucos concelhos do país não estão dotados de aparelhos de justiça, com tribunal, Ministério Público, advogados e oficiais de justiça. Estendemos o aparelho judiciário pelo país todo, salva raras exceções, com instalações e jovens magistrados de muito mérito, administrando justiça às nossas gentes.

Temos que realçar estes factos não só por razões de justiça, mas também como incentivo para o caminho que falta percorrer.

Não ignoro, como Presidente da República, a escassez dos recursos do país e, consequentemente, das necessidades sentidas pelos Tribunais e pelo Ministério Público. Também sou sensível à insuficiência de recursos para a assistência judiciária, na modalidade de patrocínio judiciário, pois que franjas significativas da população cabo-verdiana enfrentam grandes dificuldades na contratação de advogados para a defesa das suas causas, tanto no domínio cível como criminal.

Cidadãos de ilhas e concelhos sem advogados ou com muito poucos advogados que se têm deslocar aoutros concelhos ou mesmo ilhas em busca de assistência técnica e sem recursos adequados. É um problema moral do nosso tempo que precisamos de resolver, não obstante as reconhecidas dificuldades do país, pois ele configura uma realidade que pode comprometer todo o sistema, criando a convicção de uma Justiça a duas velocidades: uma para os pobres e outra para os mais abastados. A esta questão tem de ser concedida a maior prioridade. Na verdade, a persistência da situação actual é, de certa forma, a negação prática da máxima segundo a qual a Justiça é igual para todos.


Apesar dos constrangimentos, vale a pena um esforço financeiro adicional para dotar os Tribunais e o Ministério Público de meios que lhes permitem assegurar a realização da justiça com um grau de eficiência e eficácia razoáveis, compatíveis com as exigências do mundo moderno e do Estado de Direito Democrático.

E a propósito dos recursos, queria aproveitar a ocasião para pedir a atenção para um aspecto que me parece muito importante: não vale a pena investir, construir edifícios, instalar equipamentos e programas, novos procedimentos e circuitos, se não criarmos a capacidade de manter, conservar, cuidar e acompanhar de forma sistemática. Quantos edifícios novos se tornaram velhos em pouco tempo? Quantos equipamentos estão amontoados? Quantos programas absolutamente inoperacionais? Quantos procedimentos deixaram de ser executados? Esse é um grave problema da nossa administração pública. Recursos avultados em equipamentos e tecnologias que rapidamente se transformam em sucata! Não importa apenas ter o que queremos mas também o que devemos fazer para manter o que queremos. Só vale apena o investimento quando tivermos previamente criado a capacidade de conservar, de manter e de optimizar o aproveitamento.

E isso implica três coisas fundamentais: formação, recursos e responsabilização. Formar para saber utilizar, maximizar o aproveitamento e conservar; recursos para manter e reparar; e responsabilizar os utilizadores pelo desleixo e pela incúria. Somos pobres, temos maiores dificuldades em adquirir coisas novas e por isso devemos ser mais exigentes. Uma cultura de exigência é imposta pela nossa condição de país pobre mas ousado, com ânsia de vencer os desafios do futuro. Infelizmente verificamos, não raras vezes, investimentos inconsequentes, com morte aprazada, por falta de projecção do futuro.

Hoje, mais do que nunca, e em todas as latitudes, a sociedade exige uma maior eficiência do sistema. O ritmo de vida, a complexidade dos problemas e as vulnerabilidades decorrentes de um mundo intensamente competitivo, impõem uma qualidade e taxa de rendibilidade maiores ao conjunto do aparelho judiciário, exigência feita também aos demais sectores da nossa vida política, económica e social.

Na verdade, a substância da resposta deve ser adequada à complexidade dos problemas de hoje e às expectativas do meio social muito exigente. E isso é muito importante como facto de legitimação das decisões. Convencer, mais do que vencer, é uma exigência constitucional imposta a todos os decisores. E para isso, a investigação, o estudo, a formação e a especialização constituem factores de importância vital. E com reflexos evidentes na própria rentabilidade do sistema. Cabo Verde dispõe de magistrados jovens, numa grande medida, o que é muito positivo, e com grandes potencialidades. Sérios, empenhados e dedicados à causa da justiça, e por isso vale a pena um esforço adicional por parte das autoridades nesta matéria de formação e especialização, criando condições para um reforço do sistema de administração da justiça.

Senhora Presidente do CSMJ,
Senhor Presidente do STJ,
Senhor PGR,
Ao se falar da administração da justiça é incontornável o problema da morosidade. Registamos com muito apreço o esforço que vem sendo feito no sentido de minorar o problema. E sabemos que não é de fácil solução, mas ela deve ser permanentemente procurada, até se encontrar um nível razoável que seja compatível com as exigências da sociedade cabo-verdiana e com imperativos constitucional e moral de Justiça.

A esse respeito, creio registar-se um consenso alargado sobre a necessidade de se aumentar a produtividade, com melhor organização e utilização de meios e com maior responsabilização daqueles que deixem de observar certos padrões de exigências estabelecidos. É importante que isso se faça, pois que o poder deve sempre implicar responsabilidade pelo seu exercício, na forma e na substância.

Mas a morosidade a que particularmente queria fazer hoje referência, como Presidente da República, é aquela que diz respeito aos processos criminais de pequena e média gravidade. Os dados apontam para uma morosidade que atingiu níveis absolutamente irrazoáveis. Na verdade o número de pendências (5 236 processos crime pendentes nos tribunais de comarca, acrescidos 99 no STJ,até 31 de Julho de 2012, e 62 466 – sessenta e dois mil, quatrocentos e sessenta e seis processos pendentes no MP até 15 de Setembro de 2012), mostram que urge pôr cobro a esta situação, pois o risco de extinção dos procedimentos criminais por prescrição é cada vez maior. O Estado não pode permitir que, de forma sistemática, fiquem impunes muitos dos crimes contra o património, a honra, a integridade física, a fé pública, a autoridade, a ordem e tranquilidade públicas, crimes eleitorais… Não é aceitável e importa reverter com urgência a situação. E, note-se, que estes processos têm um forte impacto no sentimento de insegurança dos cidadãos. A ideia da impunidade, da ausência de autoridade, o medo e a vontade de fazer justiça pelas próprias mãos, decorrem muito desta insustentável situação dos processos crimes.
Não estamos nem de longe, nem de perto, ligados a uma qualquer concepção meramente funcionalista de um sistema penal, mas é mister aceitar-se que uma resposta oportuna, justa e adequada é condição fundamental para que se reitere permanentemente a confiança da comunidade –afinal, o destinatário das normas – na vigência e na validade das normas que editamos.
Não se pode pensar que o problema é de fácil solução, e por isso todos nós somos obrigados a dar a nossa contribuição para uma busca de solução, no quadros dos recursos disponíveis. O que todos sabemos é que não podemos ter autoridades criminais que praticamente se ocupam apenas de processos crimes com arguidos em prisão preventiva, por receio de libertação por decurso do prazo. Na minha perspectiva como Presidente da República é hoje o principal problema que enfrentamos e que devemos encarar de frente e com muita urgência.

Na busca das soluções, temos, contudo, de evitar soluções aparentemente fáceis, cómodas e eficazes, mas que – mesmo tendo em conta experiências de outras latitudes – podem revelar-se ilusórias e frustrantes. Designadamente, deve evitar-se a tentação da legislação «à flor da pele» ou a «fuga em frente» para a lei Tenho, no entanto a convicção de que com meios, organização e produtividade o problema certamente tem solução eficiente, nos limites, naturalmente, de um Estado de direito e de democracia, estando o Presidente da República disponível para dar o seu contributo nessa matéria.

O ano de 2013 vai ser um ano de grandes realizações no domínio da justiça. É o ano da recomposição do Supremo tribunal de Justiça com novas funções e dos Tribunais de Segunda Instância, soluções fixadas na revisão constitucional de 2010. Cabo Verde foi ousado e procedeu a reformas inovadoras, caminhando caminhos provavelmente nunca trilhados anteriormente. Pessoalmente não conheço sistemas próximos que contenham soluções semelhantes. O futuro será o melhor juiz da reforma encetada. Mas solidarizo-me inteiramente com as suas ideias mestras. Ela tem o indiscutível mérito de buscar o reforço da independência dos Tribunais, a autonomia da gestão das magistraturas e dos recursos, o reforço do poder dos juízes, a qualificação do sistema e a celeridade dos procedimentos. Devemos estar todos orgulhosos do trabalho feito, sem descurar a necessidade de um acompanhamento permanente para se introduzir no futuro as correcções que se vierem a mostrar necessárias.


E a aqui não posso deixar de fazer referência ao problema da instalação do Tribunal Constitucional. Instituído pela Constituição, regulado por lei, mas que ainda não passa das folhas do Boletim Oficial. Impõe-se a todos os actores políticos a obrigação de concretizar a Constituição da República, fazendo instalar com urgência o Tribunal Constitucional, porque o país precisa e a Constituição da República o exige. Há quem pense que o Tribunal Constitucional é dispensável, avançando até argumentos de natureza financeira. Respeitamos todos os argumentos, mesmo quando deles profundamente discordamos. Que um Tribunal, qualquer que ele seja, um Ministério, um instituto ou Município, tem custos, já o sabemos, mas a bondade da solução é sempre medida pela sua vantagem global.

As vantagens do Tribunal Constitucional justificam claramente os custos do seu funcionamento, pois este é um Estado de Direito Democrático, regime que deve ser assegurado, entre outras instituições, por um papel activo do Tribunal Constitucional. Num país como o nosso, ainda com uma fraca cultura de democracia e com uma insuficiente «vontade de constituição», o funcionamento de uma jurisdição constitucional autónoma, com juízes competentes, dedicados e independentes contribuirá seguramente para potenciar uma tal cultura e para a realização progressiva dos valores da constituição, vale dizer da democracia e do estado de direito. Experiências de outros países – onde também existia uma larga tradição de «positivismo legal» - assim nos ensinam.

Mas é ainda certo que, em caso algum, a opinião que possamos ter sobre a utilidade do Tribunal Constitucional não pode legitimar a recusa em cumprir a Constituição.

Como dizia há pouco, devemos estar orgulhosos do caminho percorrido. E devemos melhorar as condições de sorte a maximizar o sistema. E entre todos os actores do sistema, permitam-me destacar aqui os magistrados, pela complexidade da tarefa, pela enorme responsabilidade da função e pelos sacrifícios que impõe. Não existe qualquer alternativa aos Tribunais, no quadro de um Estado de Direito Democrático, em matéria de garantia efectiva de direitos dos cidadãos. É a lei dita pelos Tribunais que governa as nossas vidas e só nesse sistema, com magistrados verdadeiramente independentes, podemos confiar. O poder de submeter outros poderes ao direito constituído é atribuição dos magistrados, através dos tribunais.

É uma função essencial, muitas vezes ingrata, e que deve merecer o reconhecimento de todos. Fica aqui neste acto solene registada a minha mais sincera homenagem.

Uma palavra de apreço para o trabalho importantíssimo, muitas vezes invisível, porque discreto, dos oficiais de justiça. A qualidade e eficiência da justiça assentam muito nessa função. A quantidade e qualidade dos oficiais de justiça são factores incontornáveis no diagnóstico do sistema e na avaliação dos resultados. São eles a dar suporte a função jurisdicional e por isso gostaria de deixar aqui expresso o meu profundo reconhecimento pelo trabalho que vêm desenvolvendo, não obstante as dificuldades conhecidas por todos.

A função dos advogados é muito digna mas também muito ingrata. O que acontece com mais frequência é confundir-se o advogado com a causa que defende. Todos podem precisar um dia dos serviços de assistência de um advogado, mas aqueles que julgam que não precisam e nem hão-de precisar, não raras vezes desconsideram a função, coresponsabilizando os advogados por alegados factos imputados aos seus clientes. Mas eles são parceiros na nossa desgraça e uma voz de conforto quando mais precisamos. Não existe nenhum Estado de Direito Democrático que tenha inventado uma alternativa a um sistema de defesa confiado a advogados, livres e independentes. Aqui fica também a minha homenagem.

A todos vós desejo um bom ano judicial 2012-2013.


Muito Obrigado.

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