O acto constitutivo da Academia Cabo-verdiana de
Letras – ACL é prova irrefutável da saúde da nossa Nação. Em boa verdade,
quando uma Nação, com raízes tão profundas no tempo como a nossa, demonstra ter
ainda húmus para continuar a afinar a sua organização e sistematização é porque
está bem.
A Nação cabo-verdiana antecede o Estado
cabo-verdiano. Muito antes da constituição do ente que confere personalidade
jurídica à Nação cabo-verdiana, esta já se havia constituído e consolidado. E
se dúvida houvesse a esse respeito, o rol de Imortais da nascente Academia
Cabo-verdiana de Letras está aí para elucidar os mais cépticos. Todos eles
nasceram e assumiram a sua cabo-verdianidade muito antes do 5 de Julho de 1975,
e mesmo deram contribuição decisiva para a orientação dos movimentos sociais e
políticos que viriam a liderar a luta para a autodeterminação e independência
de Cabo Verde.
Todos eles, de ANDRÉ ALVARES D' ALMADA – (1555 –
1650) a JOÃO BAPTISTA RODRIGUES (falecido recentemente), passando por ANTÓNIA
GERTRUDES PUSICH, JOSÉ EVARISTO DE ALMEIDA, GUILHERME DANTAS, LUÍS LOFF DE
VASCONCELOS, JANUÁRIO LEITE, EUGÉNIO TAVARES, PEDRO MONTEIRO CARDOSO, JOÃO
LOPES, ANTÓNIO AURÉLIO GONÇALVES, JORGE
BARBOSA, MANUEL MONTEIRO DUARTE, JAIME
DE FIGUEIREDO, MANUEL LOPES, BALTASAR LOPES DA SILVA, MANUEL FERREIRA, ANTÓNIO
NUNES, HENRIQUE TEIXEIRA DE SOUSA, AMÍLCAR CABRAL, YOLANDA MORAZZO, OVÍDIO MARTINS, GABRIEL
MARIANO, LEOPOLDINA BARRETO, JOÃO VARELA, MÁRIO FONSECA, JOÃO HENRIQUE DE OLIVEIRA
BARROS e tantos outros valorosos descendentes desta pátria que, pelo seu
engenho e pela sua arte, se foram da lei da morte libertando, nasceram, medraram e deram a sua
contribuição para a construção desta Nação valente, ainda antes das lutas que
conduziriam ao nascimento do Estado cabo-verdiano.
O acto de hoje só é possível porque a Nação mantém intacta a sua vitalidade; resulta do esforço de um punhado de notáveis filhos da nossa terra que resolveram organizar e sistematizar a potente corrente de produção literária que continua a manifestar-se entre nós. De facto, a pujança do movimento literário cabo-verdiano clamava por alguma organização, quanto mais não fosse para aproveitar as sinergias e conferir um sentido prático às intervenções dos seus actores. Em Cabo Verde, nunca a literatura foi meramente diletante. Ela sempre cumpriu um papel social muito forte.
É dado adquirido que os movimentos sociais e
políticos cabo-verdianos só começaram a arrecadar sucessos quando ganharam a
liderança dos intelectuais das ilhas. E um dos factores do sucesso da nossa
luta foi o envolvimento da juventude, fortemente influenciada pelas produções
dos nossos imortais, de entre os quais considero ser um acto de justiça
destacar os Claridosos.
As elites cabo-verdianas sempre foram muito
importantes em Cabo Verde e, de alguma forma, mantiveram ligações profundas com
a população e procuraram exprimir as suas preocupações e anseios.
A cultura foi, nesse contexto, o campo de
intervenção escolhido durante muito tempo. Os intelectuais cabo-verdianos, ao
mesmo tempo que pugnaram, afirmaram e cantaram a especificidade do país,
relativamente a Portugal, preocuparam-se com a condição de vida das populações
e, à sua maneira, denunciaram o sistema colonial e contribuíram, de forma
decisiva, para que em pleno regime colonial uma Nação fosse forjada.
Os poetas e escritores cabo-verdianos, estes,
muito cedo sentiram necessidade de se nortear pela via da literatura de
intervenção. Passar da literatura pela literatura para uma literatura
intervencionista, fazendo da arte também um instrumento de esclarecimento e de
ânimo para o bom combate que era preciso levar a cabo. Isto faz dos nossos
imortais eternos credores. Pela evolução dos movimentos sociais em movimentos
políticos; pelo sucesso dos movimentos políticos na luta pela autodeterminação
e independência; pela construção da Liberdade.
Os nossos imortais foram fundamentais numa circunstância
em que se lutava pela satisfação de necessidades básicas, quais sejam, o pão de
cada dia, a educação e os cuidados de saúde, um lar e uma pátria, enfim, a
aceitação como cidadãos de pleno direito.
Senhoras,
Senhores,
A contribuição desses imortais foi
inestimável também, e ao mesmo tempo, a outro nível: porque captaram e
recriaram a essência da nossa alma, do nosso modo de ser, e contribuíram,
assim, de forma decisiva, para a construção da nossa personalidade colectiva,
ao mesmo tempo que escancaram as portas da liberdade sem limites que só a arte
nos proporciona.
Tornaram possível imaginar um
engajamento com a arte, nomeadamente com a literatura, que não supõe,
necessariamente, militância política. Dito de outro modo, ainda que fosse em
essencial uma literatura social e politicamente engajada, o Belo reflectido na
obra desses imortais mostrou-se muito além da utilidade política, animada por
uma espécie de dinâmica progressista da libertação, de liberdade.
Ajudaram-nos a enxergar que literatura e a arte,
de um modo geral, se devem, de certa forma, reflectir a sua época, o seu
tempo e, possivelmente, assumir algumas
das bandeiras que procuram combater situações que dilaceram a alma , não, não
podem ser prisioneiras de compromissos políticos ou sociais. Neste sentido,
também entendemos nós. A escolha entre o compromisso político e a actividade
desengajada e de puro prazer resulta de uma escolha filosófica individual, do
criador.
Isto não deve implicar que ele, o criador, deva
alhear-se de tais problemas e nem que esteja proibido de os tratar. Sendo o
intelectual, de todo o modo, um cidadão especial, guiado por uma visão crítica
do mundo e das coisas, um seu engajamento seria esperado, mas, a sua liberdade
deve ser total, podendo ou não abordar a história
imediata , resultando a sua decisão de uma opção livre e não de uma
qualquer obrigação e muito menos de uma imposição.
Penso poder dizer como Roland Barthes, neste mesmo
debate:
“Admito, perfeitamente, que seja possível uma
coincidência profunda com os problemas militantes de sua época, ao mesmo tempo
que não se crê ser obrigatório, por esta razão, censurar a actividade erótica
de reescrever…”.
O compromisso primeiro é com a estética e deve caber ao criador, e só a
ele, a decisão de escolher os conteúdos que devem dar corpo à sua vertigem criadora.
Do mesmo modo que a graça e a beleza que emanam
das ondas ou que brotam de um brisa matinal, independem do aproveitamento que
delas se possa fazer, a criatividade do poeta ou do romancista, a sua força,
não pode ser aferida pela maior ou menor funcionalidade da sua obra.
Os temas sociais, políticos, místicos, religiosos,
filosóficos, o amor, a morte, a paixão, entre outros, são o menu onde,
livremente, o criador deve beber para criar o Belo, que poderá ou não ser
aprendido pelo Outro, cujo espírito necessita tão intensamente dessa comunhão estética,
como o físico necessita do pão.
Com isso queremos afirmar que o criador deve alienar-se
do drama dos que sofrem, dos que são subjugados
pelos diversos tipos de tirania, dos que têm o corpo aprisionado e a alma
destruída, do funcionamento geral das sociedades? Como qualquer ser humano,
qualquer cidadão, não deve fazê-lo.
Poderá fazer da sua arte uma arma de combate pela
liberdade, contra todas as opressões. Mas, assim como não faz sentido que se exija a um cirurgião que assuma esta ou aquela
postura política, - ainda que seja desejável que defenda a que melhor favoreça
ou promova a saúde das pessoas, - o que se espera e se exige de um cirurgião é
que opere bem, que trate bem, com competência e humanismo os seu pacientes - também, o único que se deve
exigir ao criador é que, ao partilhar a sua subjectividade criativa com o Outro, procure fazê-lo com
total liberdade e com qualidade estética máxima. Se deve emprestar a causas
sociais ou políticas o sopro da sua arte é uma decisão que só a ele diz
respeito. (em todo o caso, nós mesmos tivemos já oportunidade de subscrever, há
uns anos, num encontro com escritores senegaleses, algo como isto: «Dans notre
continente déchiré par la violence et par des guerres fratricides,la
responsabilité de l’ écrivain/intellectuel est accrue.
- Il ne peut pas être libre sans les autres;
- il ne peut pas – et il ne doit pas – abandonner
lesa utres;
- il ne peut pas se procurer le salut sans les
autres»
Como é possível que um escritor genial como Jorge
Luis Borges tenha sido condenado pelo
crime de conservadorismo?
Portanto, mais além de uma função
político-social da literatura, quero acreditar na capacidade de humanização
profunda que dela advém. Pelo diálogo, leitor e obra, que se concretiza na
leitura e nas várias interpretações e maneiras possíveis de apreender os significados
e valores contidos numa obra, a literatura pode contribuir para transformar o
nosso olhar sobre as coisas, para superarmos o singular e alcançarmos o
genérico. Cabe à literatura, para tanto, oferecer-nos boa literatura, agindo em
sua esfera própria.
É esse um dos propósitos que, creio, norteia, os escritores
que, de forma abnegada e corajosa, decidiram erigir este monumento, a Academia
de Letras, aos nossos imortais, - premiar a boa literatura. Não duvido que a ACL constituirá uma autêntica Catedral
das nossas letras.
O anunciado sucesso da vossa
iniciativa será mais um cântico à Criatividade, um grande louvor à
universalidade da Alma cabo-verdiana um autêntico Hino à nossa Nação.
Muito obrigado
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