Exmo.
Sr. Presidente da Câmara Municipal de São Vicente
Meu
Caro João Branco
Prezados
Actores e integrantes das companhias visitantes e de Cabo Verde
Amigas
e Amigos
Uma das características marcantes da
Arte é a sua dimensão a um tempo momentânea e permanente.
Uma pintura, uma partitura, um filme,
uma peça de teatro, um poema são “sentidos” num momento dado, ou se se
preferir, numa sucessão de momentos dados.
A comunhão entre o criador e o destinatário, através da obra que é apreendida pelos sentidos, pelo corpo, pelo espírito, inicia-se num pedaço de tempo, que embora possa ser infinitamente renovado, é irredutivelmente curto, muito curto mesmo, efémero, não obstante integrar um todo relativamente permanente que consiste na representação que o destinatário elabora, enquanto recriação, de alguma forma «obra» sua.
Mas a criação original permanece. Ela renova-se,
revive, a cada contacto com o destinatário, uma vez que só essa relação lhe confere
sentido, lhe empresta corporalidade, ainda que simbólica. A perenidade da obra
acaba sendo assegurada por essa sucessão de contactos mais ou menos efémeros,
pelo encadeamento de momentos, de instantes, de bocados.
Pode-se assim dizer que, de certa
forma, a Arte é o congelar, num espaço e tempo, dados de emoções, apreendidas a
partir dos sentidos e reelaboradas pela memória estética, pela cultura. Se esse
congelamento contém também o movimento, esse manifesta-se de formas diferentes,
com exuberância maior ou menor.
É provável que o teatro seja a forma
de expressão artística que traduza de modo mais acabado essa articulação entre
a fixação de momentos a serem perenizados, e emoções e movimentos, que muitas
vezes se exprimem pelo silêncio e pela imobilidade. E nisso reside a substância
de sua autonomia, que, por exemplo, faz possível casar, de forma sublime e
espantosamente surpreendente, mesmo nesta edição de Mindelact, Verlaine e
Rimbaud com Shakespeare.
Talvez não fosse exagerado dizer que
esse tipo de expressão é a mais autêntica, na medida em que é mais imediata e
de alguma forma dispensa a intermediação de actor com espectador.
Não será exagerado dizer que o teatro
é a assunção plena e permanente do aqui e agora.
Naturalmente que, como as outras
formas de expressão artística, o teatro exige estudo, preparação, investigação,
dor, amiúde. Mas apenas nele (muito mais do que na música e na dança) a fusão
entre o produto e o agente é (ou, pelo menos, pretende-se que o seja) tão exigente
e próxima da perfeição. Eles confundem-se. Aqui, também, o simbolismo inerente
a qualquer criação amalgama-se com o real. Gente de carne e osso procura,
usando o próprio corpo, transmitir, em tempo real, a outra gente, também de
carne e osso, mensagens, emoções, sentimentos. Porque, digamos singelamente, se
é verdade que o actor é um homem que trabalha em público com o seu corpo,
oferecendo-o publicamente, se ele se limitar a mostrar o que é - «o que
qualquer pessoa pode fazer – não realiza um acto total» (GROTOWSKY, Para um
teatro pobre, Forja, 1975, 31). Não fará teatro, se não for a um tempo criador,
modelo e criação fundidos num só, se não tiver «ética de criação», se não
correr o risco de «causar espanto», enfim, se não se aproximar da «santidade»,
bem que a «santidade laica», de que fala Jerzy GROTOWSKY!
Perante uma pintura ou uma escultura o
apreciador pode identificar-se com a proposta estética do criador, captar a
profundidade da mensagem que emana da criação. Mas a sua presença não é
fundamental. No domínio da música a presença do agente é obrigatória, a
comunicação é imediata. Mas o elo é relativamente limitado: o som, com várias e
ricas variantes. Mas apenas som e algum movimento a ele ligado, ou melhor
ligado essencialmente à sua produção.
Na dança podemos verificar a
associação do som, da música com o movimento, com a estética corporal, que
muitas vezes nos arrebata, nos transporta para outras dimensões, nos pode extasiar.
Mas acredito que o teatro, que até
pode incorporar a dança e a música, pode ser muito mais. Pode ir muito além. O
teatro pode ser som, música, palavras, suor, silêncios fartos, gestos, riso, corpos,
dança, choro, tristeza, alegria, morte, felicidade, amor, movimento, paixão, enfim
Vida.
Talvez só o teatro consiga operar o
milagre de retractar a continuidade da vida, de forma tão global, no aqui e
agora.
Por essas razões o teatro é uma dádiva,
é uma parcela essencial do lado imaterial da vida que a revela, recria, lhe confere
uma outra natureza.
Estar aqui no meio de gente que faz
desta possibilidade de existência razão de vida, que vive este encontro
internacional como se de uma fervorosa peregrinação se tratasse, muito mais do
que uma honra, é um privilégio e motivo de indescritível prazer,
particularmente, depois de ter tido o ensejo de me deleitar com a magnificente
apresentação do "Playing Landscape" pela Companhia Point View Art.
Muito obrigado João Branco pelo
convite e pela amizade que dele escorre com toda a naturalidade. Muito obrigado
a todos os que se esmeraram para nos brindar com mais esta dádiva, para nos
tornar mais ricos, mais autênticos, mais humanizados, nesta grandioso e muito
especial palco que é a nossa querida cidade do Mindelo.
Infelizmente não pude participar do
festival, que decorreu aqui e agora e que tem o condão de fazer do aqui esta
sala, o pátio do Centro Cultural, a cadeia de Ribeirinha, ruas da cidade, as periferias
de Mindelo, isto é, faz coincidir o aqui com a ilha de São Vicente que recebeu
importantes contribuições de Santiago, Fogo e Sal, e do agora, do
instante, nove efémeros e grandiosos dias.
Importa sempre referir esta obsessão
do festival que consiste em congregar o que de melhor se faz por esse mundo
fora com o que de mais expressivo se produz em São Vicente e nas outras ilhas
do país.
A nossa condição de arquipélago
impõe-nos alguns condicionalismos que devem ser tidos em conta sempre. Verificar
que quatro ilhas estão presentes neste festival internacional, em razão da
qualidade do trabalho cénico que vêm desenvolvendo, não é o ideal, mas é muito
animador.
Permitam-me pois uma palavra de apreço
e estímulo à prata da casa que vai provando que santos de casa também podem ser
milagreiros.
Nessa linha apraz-me destacar o facto
de outras ilhas, como o Sal, procurarem realizar festivais, forma privilegiada
de divulgar e promover o teatro.
Não é novidade para ninguém que o Festival
Mindelact tem constituído uma importante alavanca para as artes cénicas em Cabo
Verde.
Hoje, a possibilidade de participar do
festival constitui um grande incentivo para as companhias cabo-verdianas, pois o
evento transformou-se numa excelente montra do teatro mundial e num espaço de
formação nas diferentes áreas das artes cénicas.
Estes nove dias vividos de forma muito
intensa nesta cidade que tem o raro privilégio de, anualmente, conviver com renomados
homens e mulheres de teatro, nesta edição vindos de Angola, Portugal, Espanha,
Brasil e Macau. Recebam, por meu intermédio e com muito carinho, uma afectuosa
saudação das gentes de São Vicente e de Cabo Verde.
Não posso deixar de referir o facto de
pela primeira vez termos, entre nós, uma companhia asiática a Point View Art,
vinda de Macau. Vir de Macau, do continente asiático, terra a que me ligam
tantos afectos, tantos cheiros, lugares, gentes, estórias, que não está a um click mas a muitos quilómetros de
distância de Cabo Verde, para nos oferecer um espectáculo tão consistente e grandioso,
é um milagre só permitido aos eleitos. Neste caso ao João Branco e equipa que
realizaram algo que se aproxima da prestidigitação e fundamentalmente da
incondicional e construída disponibilidade da companhia Point View Art.
Como sempre, as nossas crianças através
da presença de renomados contadores de história e apresentações próprias para
as suas idades foram alvo da atenção do festival.
Desta forma, ao mesmo tempo que aos
mais pequenos são proporcionados espectáculos adequados, vai-se criando um
público interessado educado, garantia última da continuidade das actividades
cénicas.
É interessante ressaltar a intenção de
ampliar o aqui, e conferir-lhe uma dimensão bem maior, uma dimensão mais
universal, não apenas através da multiplicidade de linguagens cénicas e
propostas estéticas, mas, também, por meio da concretização do propósito
declarado e assumido de construir uma rede de programadores espalhados por
vários “aqui”, ligados pela devoção ao teatro e pela grande preocupação com a
articulação de tudo o que se faz a nível mundial nesse domínio.
Se a linguagem cénica, como a da arte
em geral, é universal, ela necessita de suportes que assegurem a possibilidade
de uma partilha a mais diversificada possível. A articulação de programadores a
nível internacional pode ser uma importante via nessa direcção. Acredito que
esse instrumento será da maior utilidade para a divulgação do teatro de qualidade,
para o reforço do intercâmbio entre fazedores de teatro dos quatro cantos do
mundo e para a promoção do teatro cabo-verdiano.
A pluriculturalidade, uma das marcantes
características do mundo que se quer construir está, continua a ser umas das
grandes bandeiras deste emblemático festival internacional.
É altamente positivo, repito, o facto
de o festival reunir companhias de sete países diferentes espalhados por quatro
continentes.
Tal prodígio só foi possível porque
dezenas ou mesmo centenas de vontades formaram uma corrente que veio desembocar
em Mindelo.
Muita energia foi despendida para que
esse entrelaçar de culturas e de afectos assumisse a grandiosidade, a sublime
transfiguração, que só a arte autêntica pode proporcionar.
Pessoas diversas terão dado o seu
máximo, instituições várias terão ajudado a garantir a realização deste
festival.
Mas não duvido que, se tivermos de
escolher um rosto que represente toda a congregação de esforços, de energia, de
criatividade, de afecto e de emoções, ele não poderia ser outro senão o de João
Branco a quem agradeço enquanto Presidente da República e abraço na qualidade
de amigo e admirador.
Até Setembro de 2014, ano vinte do
Mindelact
Declaro encerrado o 19º Festival Mindelact
Muito Obrigado
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