segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Discurso de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, Dr. Jorge Carlos Fonseca, por ocasião do Encerramento da 19ª edição do Festival Internacional de Teatro do Mindelo Praia, 14 de Setembro de 2013.




A Arte ou a outra dimensão da Vida

Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal de São Vicente
Meu Caro João Branco
Prezados Actores e integrantes das companhias visitantes e de Cabo Verde
Amigas e Amigos

Uma das características marcantes da Arte é a sua dimensão a um tempo momentânea e permanente.
Uma pintura, uma partitura, um filme, uma peça de teatro, um poema são “sentidos” num momento dado, ou se se preferir, numa sucessão de momentos dados.



A comunhão entre o criador e o destinatário, através da obra que é apreendida pelos sentidos, pelo corpo, pelo espírito, inicia-se num pedaço de tempo, que embora possa ser infinitamente renovado, é irredutivelmente curto, muito curto mesmo, efémero, não obstante integrar um todo relativamente permanente que consiste na representação que o destinatário elabora, enquanto recriação, de alguma forma «obra» sua.
Mas a criação original permanece. Ela renova-se, revive, a cada contacto com o destinatário, uma vez que só essa relação lhe confere sentido, lhe empresta corporalidade, ainda que simbólica. A perenidade da obra acaba sendo assegurada por essa sucessão de contactos mais ou menos efémeros, pelo encadeamento de momentos, de instantes, de bocados.

Pode-se assim dizer que, de certa forma, a Arte é o congelar, num espaço e tempo, dados de emoções, apreendidas a partir dos sentidos e reelaboradas pela memória estética, pela cultura. Se esse congelamento contém também o movimento, esse manifesta-se de formas diferentes, com exuberância maior ou menor.

É provável que o teatro seja a forma de expressão artística que traduza de modo mais acabado essa articulação entre a fixação de momentos a serem perenizados, e emoções e movimentos, que muitas vezes se exprimem pelo silêncio e pela imobilidade. E nisso reside a substância de sua autonomia, que, por exemplo, faz possível casar, de forma sublime e espantosamente surpreendente, mesmo nesta edição de Mindelact, Verlaine e Rimbaud com Shakespeare.

Talvez não fosse exagerado dizer que esse tipo de expressão é a mais autêntica, na medida em que é mais imediata e de alguma forma dispensa a intermediação de actor com espectador.
Não será exagerado dizer que o teatro é a assunção plena e permanente do aqui e agora.

Naturalmente que, como as outras formas de expressão artística, o teatro exige estudo, preparação, investigação, dor, amiúde. Mas apenas nele (muito mais do que na música e na dança) a fusão entre o produto e o agente é (ou, pelo menos, pretende-se que o seja) tão exigente e próxima da perfeição. Eles confundem-se. Aqui, também, o simbolismo inerente a qualquer criação amalgama-se com o real. Gente de carne e osso procura, usando o próprio corpo, transmitir, em tempo real, a outra gente, também de carne e osso, mensagens, emoções, sentimentos. Porque, digamos singelamente, se é verdade que o actor é um homem que trabalha em público com o seu corpo, oferecendo-o publicamente, se ele se limitar a mostrar o que é - «o que qualquer pessoa pode fazer – não realiza um acto total» (GROTOWSKY, Para um teatro pobre, Forja, 1975, 31). Não fará teatro, se não for a um tempo criador, modelo e criação fundidos num só, se não tiver «ética de criação», se não correr o risco de «causar espanto», enfim, se não se aproximar da «santidade», bem que a «santidade laica», de que fala Jerzy GROTOWSKY!

Perante uma pintura ou uma escultura o apreciador pode identificar-se com a proposta estética do criador, captar a profundidade da mensagem que emana da criação. Mas a sua presença não é fundamental. No domínio da música a presença do agente é obrigatória, a comunicação é imediata. Mas o elo é relativamente limitado: o som, com várias e ricas variantes. Mas apenas som e algum movimento a ele ligado, ou melhor ligado essencialmente à sua produção.

Na dança podemos verificar a associação do som, da música com o movimento, com a estética corporal, que muitas vezes nos arrebata, nos transporta para outras dimensões, nos pode extasiar.
Mas acredito que o teatro, que até pode incorporar a dança e a música, pode ser muito mais. Pode ir muito além. O teatro pode ser som, música, palavras, suor, silêncios fartos, gestos, riso, corpos, dança, choro, tristeza, alegria, morte, felicidade, amor, movimento, paixão, enfim Vida.

Talvez só o teatro consiga operar o milagre de retractar a continuidade da vida, de forma tão global, no aqui e agora.  
Por essas razões o teatro é uma dádiva, é uma parcela essencial do lado imaterial da vida que a revela, recria, lhe confere uma outra natureza.
Estar aqui no meio de gente que faz desta possibilidade de existência razão de vida, que vive este encontro internacional como se de uma fervorosa peregrinação se tratasse, muito mais do que uma honra, é um privilégio e motivo de indescritível prazer, particularmente, depois de ter tido o ensejo de me deleitar com a magnificente apresentação do "Playing Landscape" pela Companhia Point View Art.

Muito obrigado João Branco pelo convite e pela amizade que dele escorre com toda a naturalidade. Muito obrigado a todos os que se esmeraram para nos brindar com mais esta dádiva, para nos tornar mais ricos, mais autênticos, mais humanizados, nesta grandioso e muito especial palco que é a nossa querida cidade do Mindelo.

Infelizmente não pude participar do festival, que decorreu aqui e agora e que tem o condão de fazer do aqui esta sala, o pátio do Centro Cultural, a cadeia de Ribeirinha, ruas da cidade, as periferias de Mindelo, isto é, faz coincidir o aqui com a ilha de São Vicente que recebeu importantes contribuições de Santiago, Fogo e Sal, e do agora, do instante, nove efémeros e grandiosos dias.

Importa sempre referir esta obsessão do festival que consiste em congregar o que de melhor se faz por esse mundo fora com o que de mais expressivo se produz em São Vicente e nas outras ilhas do país.
A nossa condição de arquipélago impõe-nos alguns condicionalismos que devem ser tidos em conta sempre. Verificar que quatro ilhas estão presentes neste festival internacional, em razão da qualidade do trabalho cénico que vêm desenvolvendo, não é o ideal, mas é muito animador.

Permitam-me pois uma palavra de apreço e estímulo à prata da casa que vai provando que santos de casa também podem ser milagreiros.
Nessa linha apraz-me destacar o facto de outras ilhas, como o Sal, procurarem realizar festivais, forma privilegiada de divulgar e promover o teatro.  

Não é novidade para ninguém que o Festival Mindelact tem constituído uma importante alavanca para as artes cénicas em Cabo Verde.
Hoje, a possibilidade de participar do festival constitui um grande incentivo para as companhias cabo-verdianas, pois o evento transformou-se numa excelente montra do teatro mundial e num espaço de formação nas diferentes áreas das artes cénicas.

Estes nove dias vividos de forma muito intensa nesta cidade que tem o raro privilégio de, anualmente, conviver com renomados homens e mulheres de teatro, nesta edição vindos de Angola, Portugal, Espanha, Brasil e Macau. Recebam, por meu intermédio e com muito carinho, uma afectuosa saudação das gentes de São Vicente e de Cabo Verde.

Não posso deixar de referir o facto de pela primeira vez termos, entre nós, uma companhia asiática a Point View Art, vinda de Macau. Vir de Macau, do continente asiático, terra a que me ligam tantos afectos, tantos cheiros, lugares, gentes, estórias, que não está a um click mas a muitos quilómetros de distância de Cabo Verde, para nos oferecer um espectáculo tão consistente e grandioso, é um milagre só permitido aos eleitos. Neste caso ao João Branco e equipa que realizaram algo que se aproxima da prestidigitação e fundamentalmente da incondicional e construída disponibilidade da companhia Point View Art.

Como sempre, as nossas crianças através da presença de renomados contadores de história e apresentações próprias para as suas idades foram alvo da atenção do festival.

Desta forma, ao mesmo tempo que aos mais pequenos são proporcionados espectáculos adequados, vai-se criando um público interessado educado, garantia última da continuidade das actividades cénicas.   

É interessante ressaltar a intenção de ampliar o aqui, e conferir-lhe uma dimensão bem maior, uma dimensão mais universal, não apenas através da multiplicidade de linguagens cénicas e propostas estéticas, mas, também, por meio da concretização do propósito declarado e assumido de construir uma rede de programadores espalhados por vários “aqui”, ligados pela devoção ao teatro e pela grande preocupação com a articulação de tudo o que se faz a nível mundial nesse domínio.

Se a linguagem cénica, como a da arte em geral, é universal, ela necessita de suportes que assegurem a possibilidade de uma partilha a mais diversificada possível. A articulação de programadores a nível internacional pode ser uma importante via nessa direcção. Acredito que esse instrumento será da maior utilidade para a divulgação do teatro de qualidade, para o reforço do intercâmbio entre fazedores de teatro dos quatro cantos do mundo e para a promoção do teatro cabo-verdiano.

A pluriculturalidade, uma das marcantes características do mundo que se quer construir está, continua a ser umas das grandes bandeiras deste emblemático festival internacional.
É altamente positivo, repito, o facto de o festival reunir companhias de sete países diferentes espalhados por quatro continentes.

Tal prodígio só foi possível porque dezenas ou mesmo centenas de vontades formaram uma corrente que veio desembocar em Mindelo.
Muita energia foi despendida para que esse entrelaçar de culturas e de afectos assumisse a grandiosidade, a sublime transfiguração, que só a arte autêntica pode proporcionar.

Pessoas diversas terão dado o seu máximo, instituições várias terão ajudado a garantir a realização deste festival.
Mas não duvido que, se tivermos de escolher um rosto que represente toda a congregação de esforços, de energia, de criatividade, de afecto e de emoções, ele não poderia ser outro senão o de João Branco a quem agradeço enquanto Presidente da República e abraço na qualidade de amigo e admirador.


Até Setembro de 2014, ano vinte do Mindelact
Declaro encerrado o 19º Festival Mindelact

Muito Obrigado

Sem comentários:

Enviar um comentário