terça-feira, 16 de julho de 2013

Discurso de Sua Excelência o Presidente da República de Cabo Verde, Dr. Jorge Carlos Fonseca por ocasião da Cerimónia Funebre de Adriano Gonçalves, ”Bana” - Lisboa, 15 de Julho de 2013

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O desaparecimento físico de Adriano Gonçalves representa, sem dúvida, uma perda importante para a família e  para os amigos. A esposa, os filhos e demais familiares bem como as outras pessoas que com ele conviviam, não mais poderão contar com as suas palavras, os seus gestos, o seu afecto.

Da relação de que se alimenta  no dia-a-dia das pessoas, especialmente das que têm uma proximidade maior, Bana já não poderá participar. Os que lhe são próximos não poderão mais contar com a sua presença física, com  a sua convivência. A saudade, este estranho e poderoso sentimento, que foi  tão bem cantado  por Bana, ao mesmo tempo que suaviza a dor, alimentará o sofrimento que a morte sempre carrega.
Sim. Para os próximos, a perda é irreversível.


Mas para Cabo Verde, para a Cultura da qual ele foi um dos seus expoentes máximos, poder-se-á falar em perda? Entendo que não. Mesmo que por hipótese todo o registo de imagem  e som do longo, rico e diversificado  percurso de Bana desaparecesse, ainda que, por absurdo, fossem apagados da memória dos cabo-verdianos, a figura, a arte, a emoção que ao  longo de muitas décadas esse Homem carregou, encarnou, recriou, a perda não se consumaria.

Porque existiu arte, existiu, em essência,  surpreendida emotividade,  existiu visível criatividade, não apenas porque  Bana as assumiu por inteiro e de forma muito especial, não apenas por que ele as elevou a patamares nunca antes tocados, não apenas porque, como disse Morgadinho, ele se transformou num Monstro Sagrado, mas  porque havia gente que o ouvia, havia gente que se sentia mais gente depois de o apreciar, ficando por vezes mais tristes e outras mais alegres. Pessoas que, em certos momentos, poderiam sentir-se mais preocupadas ou mesmo revoltadas. Às vezes desesperadas, mas que também experimentavam o romantismo, o sabor de uma doce ilusão, a esperança a bordejar, latente, no oceano largo e azul de nossos sonhos.  

Isto é, ao longo de décadas, esse homem fez milhares de pessoas sentirem-se gente, gente muito especial de um lugar muito especial. Gente de Cabo Verde.
Costumo dizer que a nossa gente, especialmente os jovens devem levantar a nossa terra e elevá-la aos céus, roçar o infinito. Esse homem conseguiu isso. Esse homem enorme não apenas entranhou e deleitou a nossa alma ao logo de décadas, ele participou da sua edificação.

É por isso que para Cultura não se pode falar em perda. A alma do cabo-verdiano que também foi moldada pela sua arte, não fenece, não desaparece, não morre. Por isso, ele é imortal.

Esse homem, querendo ou não, é  muito  mais do que si mesmo. Quase se pode dizer que ele é um instrumento que a Cultura utilizou para se afirmar, para construir e percorrer a sua trilha. Despindo-o da circunstância de ser filho de pai de Ribeira da Barca e de  mãe da ilha do Maio, nascido em S. Vicente e de todas as outras contingências, que simultaneamente encarnava, a Cultura, ao utilizá-lo na construção da nossa alma, da nossa cabo-verdianidade, abrindo-lhe caminhos para construi-la e penetrar nos seus interstícios, desmaterializou-o, absolutizou-o, concedeu-lhe uma natureza que se aproxima do transcendental.

Terá sido por acaso que  Bana teve o percurso que se conhece? Terá sido obra do acaso o facto de ele, estivador que também  cantava , ter  “corrido”  atrás de B.Leza, como se uma força imparável o impelisse em direcção ao mestre ? Terá sido por acaso que da genialidade de ambos, o sublime, pudesse dar pelo nome de “Eclipse” ou “ Lua nha Testemunha”?

Bana foi criado à imagem e semelhança de uma Cultura que o elegeu como um dos seus instrumentos privilegiados, que lhe indicou o caminho e  lhe traçou o destino. Mas se isso é verdade, Adriano Gonçalves pagou na mesma moeda. Imprimiu o seu cunho pessoal, o seu génio, a sua criatividade, a esse processo. Enfim, ele retocou – e como retocou! - um pedaço da nossa alma.

Essa alma que se refaz em permanência, sem perder a essência. Essa alma que habita a ilha do Maio, a Ribeira da Barca, sítios muitos de Lisboa e Rotterdam,  e as sedutoras noites de Mindelo que Bana, igualmente,  foi encontrar nas sete partidas do mundo por onde passou essa alma crioula.

O seu percurso  assemelha-se à  desmaterialização da Nação cabo-verdiana. Nasceu e cresceu em Cabo Verde, mas viveu muitos anos fora do país, no seio da emigração, dessa parcela da Nação que se constrói fora das ilhas.

A minha presença nesta cerimónia  assume essa realidade. Se não se pode  dizer que me encontro em território cabo-verdiano, no que se refere à Nação não existem dúvidas de que me encontro no seio dela, de  uma sua importante parcela que, como a Nação inteira chora Bana.

Em nome do Povo cabo-verdiano, de toda a Nação cabo-verdiana, apresento à Sra Aquilina Nascimento Gonçalves, aos filhos e a todo os familiares as mais sentidas condolências.

Lamento profundamente a morte de Bana e exprimo o profundo reconhecimento por tudo o que  fez pela nossa  Cultura. O seu legado jamais  desaparecerá, pois habita definitivamente o coração de todos os cabo-verdianos.

Estamos de luto. Invade-nos uma grande tristeza que na diáspora e nas ilhas  nos une, nos dilacera ao mesmo tempo que nos engrandece e fortalece a cabo-verdianidade. Foi-se um homem que, com o seu canto, a sua voz, a sua arte, o seu talento tocou os céus. Com a sua voz enfeitou  e perenizou o Belo  que existe na nossa   Cultura. Deu-lhe a cor que só os eleitos podem conceder.  Sim houve uma perda. Mas a Cultura, a nossa alma, não poderá dar-se por ela.

Repito o que, atravessado pela notícia madrugada adentro, escrevi em nota nesse início fatídico de sábado, dia 13: «Esse, sim, cujo nome lembra de imediato o de Cabo Verde, a sua VOZ. Voz ímpar que não se vai. Voz que faz ecoar «Eternidade», «Nossa Senhora de Fátima», «Lua nha testemunha», «Na caminhe de Maderalzim», «Traiçoeira de Dakar», «Lora»... BANA continua, pois, entre nós, sempre. Sempre GRANDE, um dos GRANDES. 

Há um ano, a meu lado, via-lhe e sentia-lhe as lágrimas fartas de um homem e de uma alma plenos de autenticidade. Ainda cantou uma morna. E continuou com as lágrimas. Foi-se o nosso BANA?! Não, fica eternamente connosco.»    


Muito obrigado

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