quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Entrevista da Sua Excelência o Presidente da República à Revista Nós Gentis, Agosto de 2012


Jorge Carlos Fonseca
Presidente da República de Cabo Verde
Erigir o futuro da nação

Jorge Carlos de Almeida Fonseca, nasceu no Mindelo a 20 de outubro de 1950. Jurista de profissão, foi eleito a 9 de setembro de 2011 Presidente da República de Cabo Verde. Com um percurso político iniciado na luta de libertação nacional, Jorge Carlos Fonseca foi, entre 1975 e 1977, Diretor Geral da Emigração de Cabo Verde. Entre 1977 e 1979, ocupou funções de secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ao que se seguiu um período de algum afastamento da vida política, aproveitado profissionalmente para lecionar, primeiro na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (1982-1990) e depois no Instituto de Medicina Legal, também na cidade de Lisboa. Entre 1991 e 1993, regressa à vida política ativa, ocupando a pasta de Ministro dos Negócios estrangeiros. Autor de vários trabalhos na área do direito, Jorge Carlos Fonseca foi inúmeras vezes condecorado pelo Estado de Cabo Verde. É um dos titulares do Estatuto de Combatente da Liberdade e da Pátria.

  
No seu entender, na época colonial, o pensamento generalizado dos intelectuais e nacionalistas era lutar pela independência ou simplesmente reclamar mais justiça, mais igualdade e melhores condições sociais para o povo cabo-verdiano?

A luta pela independência de Cabo Verde fez-se num contexto histórico muito específico. Penso que dificilmente poderemos falar de um pensamento independentista estruturado, antes da criação do PAIGC, na Guiné-Bissau. É claro que antes disso, houveram alguns movimentos mais ou menos político-culturais pela afirmação da autonomia de Cabo Verde, muitos deles num quadro de autonomia regional, subjacente a Portugal.
A radicalização pela separação e consequente luta pela independência, com um pensamento estruturado e organizado, só surge com criação do PAIGC, o que quer dizer que, se o objetivo era a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, essa luta foi sempre pensada, contextualizada e operacionalizada num quadro teórico de unidade africana.
Se pensarmos no ideal de Amílcar Cabral, verificamos que a sua teorização surge num contexto de afirmação de África. Neste sentido, penso que podemos afirmar que houve uma influência do pan-africanismo no processo de independência, sobretudo se pensarmos que, já em 1945, no congresso de Manchester, já com a presença de Nkrumah e Kenyatta, a ideia de "África para os africanos", e mesmo algumas ideias de Cabral, nomeadamente a "africanização dos espíritos", começavam a ter forma. Daí que a luta pela independência, se tenha realizado num quadro pela unidade africana, e talvez por isso, surgiu a ideia de uma luta com base num cenário de unidade entre a Guiné e Cabo Verde.
Evidentemente que esta unidade, obedeceu a outro tipo de razões, nomeadamente de estratégia política e diplomática, mas sem dúvida que tem a ver com essa perspetiva mais geral de unidade africana.

Essa estratégia da unidade, muito defendida por Amílcar Cabral e que levou ao pensamento e mais tarde à ligação ideológica à Guiné-Bissau, não terá retirado aos cabo-verdianos a liderança dos seus destinos, nomeadamente nas negociações dos termos da independência nacional?

Essa ideia de segundo plano de Cabo Verde nas lutas pela independência, tem a ver com as circunstâncias concretas desses movimentos. Quando se optou pela luta armada, o mais visível e estrategicamente mais adequado às aspirações dos povos, era a luta desencadear-se no continente, mais concretamente nas matas da Guiné-Bissau. Historicamente e pelos dados que tenho, pensou-se igualmente numa luta nas ilhas. Inclusivamente, houveram quadros cabo-verdianos que foram formados para um desembarque militar nas ilhas, tentando transpor para Cabo Verde a teoria do foquismo de Che Guevara, que consistia em criar focos de revolução, neste caso adaptados a Cabo Verde. Contudo, chegou-se à conclusão que não era viável, nem o desembarque nem a luta armada, aqui nas ilhas de Cabo Verde.
Penso que não foi tanto uma questão de estratégia, mas sim uma questão de eficácia e pragmatismo em se atingirem os objetivos. De qualquer forma, a luta foi feita por guineenses, mas também por cabo-verdianos, muitos deles a lutar na frente da teorização do conflito.
Em Cabo Verde e mesmo na diáspora cabo-verdiana, a luta funcionou noutros moldes, mais concretamente através de ações clandestinas de enfraquecimento do regime colonial. Do ponto de vista externo, era mais comum falar-se na luta na Guiné-Bissau, no entanto, não creio que tenha sido por razões estratégicas ou por alguma ideia de resignação em relação ao conflito, que não houve mais protagonismo por parte dos cabo-verdianos.
O facto de, logo após reunidas as condições de afirmação da independência em Cabo Verde, ter havido uma adesão popular extraordinária à luta, mostra que os cabo-verdianos também tinham presente a ideia da separação, da autonomia e da criação de uma identidade própria, que não a imposta pelo regime.

A esta distância, acha que era possível viabilizar esta visão política de Amílcar Cabral, relativamente à união dos dois povos, quer em termos políticos, quer em termos culturais e económicos?
Creio que a ideia de unidade entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde, era um objetivo e um conceito que obedecia a uma visão estratégica de luta. Talvez naquele contexto histórico, onde já haviam lutas de outros povos africanos pela sua autonomia e independência, diplomaticamente talvez fosse mais fácil enquadrar a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde num argumento de emancipação dos povos africanos. Houve um esforço de fundamentação desse projeto de unidade, através de critérios históricos e culturais, mas sobretudo, através de uma definição de estratégia de luta.
Acredito que essa ideia não tenha vingado, nomeadamente aqui em Cabo Verde, pelo facto de haverem diferenças visíveis entre os dois povos, sobretudo ao nível das dinâmicas sociais e dos processos de formação histórico-sociais. Ainda hoje há um problema na nação guineense, face à diversidade das etnias do seu povo, o qual lhes dificulta a construção do Estado. Em Cabo Verde, a nação precedeu o Estado. A nação cabo-verdiana existe muito antes da independência, muito antes do PAIGC. Muito antes da luta, já existia uma nação cabo-verdiana, mais ou menos sólida, com critérios de identidade próprios, designadamente a língua, o modo se ser e de estar, as tradições e a cultura. Este é um elemento forte da nossa identidade que não existia, na época, na Guiné-Bissau.
Estes estados de evolução histórico-sociais diferentes, levaram a que a ideia não vingasse em Cabo Verde e que, na oportunidade que houve para a sociedade cabo-verdiana se pronunciar, esta a tenha renunciado. Lembro-me que, a quando do Golpe de Estado de 1980 na Guiné-Bissau, houve festa aqui em Cabo Verde, pois o povo sentiu esse momento como uma espécie de alívio.
Alguns poderão dizer que o projeto talvez não tenha sido bem explicado ou fundamentado. A minha opinião é que, não havia uma grande teorização desta ideia. Mesmo junto dos dirigentes do PAIGC, tanto da Guiné como de Cabo Verde, haviam muitas dúvidas e reservas em relação ao projeto de união. Talvez não se falasse muito, mas em círculos privados e restritos, sabia-se que haviam muitas hesitações quanto às próprias bases teóricas da unidade entre os dois países, sobretudo quando se pensava em unidade de Estados.
Creio que o fim desse projeto, não tem a ver com a morte de Cabral, como alguns teorizam. Quando Amílcar Cabral morreu, a ideia continua, pelo menos como um projeto oficial, mas não haviam condições sociais, culturais nem políticas para que projeto vingasse, e efetivamente, o projeto não vingou.

Lembra-se do que sentiu nesse dia 5 de julho de 1975?
Quando se dá a independência de Cabo Verde, eu tinha 24 anos de idade, mas já com sete anos de militância na clandestinidade no PAIGC, a lutar pela independência. Como jovem, sonhava com esse momento de libertação, mas não nego que, por vezes, tinha dificuldade em acreditar que algum dia esse momento chegaria. Quando ocorre o 25 de abril em Portugal, a ideia que a independência poderia ser algo de realizável, torna-se mais evidente. Antes desse momento, era apenas uma luta por ideais de justiça, igualdade e equidade para nos podermos afirmar como entidade autónoma no mundo.
O dia da independência, passei-o nos Estados Unidos da América. Fui representar Cabo Verde no estado de Massachusetts, onde ainda hoje existe uma comunidade muito forte de cabo-verdianos. Fui eu que hasteei a bandeira de Cabo Verde na celebração da independência. Foi um sentimento muito forte de felicidade e alegria, sobretudo por poder ter estado num ambiente de muitos amigos e ter tido a possibilidade de içar a nossa bandeira, nesse momento tão importante da nossa história.

Entretanto, entrou-se numa nova era, com novas responsabilidades. Foi preciso definir um modelo constitucional e político para a altura. Acha que era possível, logo a seguir à independência, desenhar-se um modelo diferente para a Constituição de Cabo Verde?
Penso que, na altura, a resposta a essa pergunta, era extremamente difícil. Atualmente, talvez seja mais fácil de responder. É sempre possível dizer que se podia fazer de forma diferente, mas à distância, vejo que no contexto preciso e concreto em que ocorreu a independência, num âmbito de clara e forte supremacia do PAIGC, e também, pelo menos aparentemente, de um apoio muito forte e entusiástico das populações ao partido e ao ideário da independência, seria muito difícil obtermos a soberania num quadro que não aquele em que se verificou. Ao nível da Organização da Unidade Africana e das Nações Unidas, o PAIGC já tinha sido reconhecido como o único movimento representativo da luta pela libertação. Haviam na altura outras organizações, mas eram muito mais frágeis e sem apoios internacionais, por isso tiveram muitas dificuldades em afirmar-se.
Com a Revolução de Abril em Portugal, houve um outro fator que pesou, que foi a aliança forte entre o PAIGC e o Movimento das Forças Armadas português.
Após a proclamação da independência num quadro de liderança do PAIGC, viveu-se, até 1991, num cenário de regime de partido único.

Será que poderia ter sido diferente?
Talvez, no entanto, também não era fácil a abertura política, embora pense que esta pudesse ter ocorrido mais cedo. Claro que tudo isto não é fácil de demonstrar, dado o contexto político da época. O certo é que, a forma como os cabo-verdianos abraçaram o movimento popular e político que levou à irrupção democrática nos anos 90, dá-nos a ideia que a sociedade há muito que estaria preparada para abraçar a democracia.
Cabo Verde, devido a condições específicas da sua sociedade, nomeadamente pelo seu processo histórico de formação, pelas elites intelectuais e culturais que possuía e possui, e pelo contacto que a vasta diáspora manteve com outros regimes já democráticos, foi sempre um espaço aberto a outros valores e culturas. Por isso, penso que os cabo-verdianos estariam preparados para eleger a democracia, bem antes dos anos 90. Tanto assim é que, contrariamente ao que muitos pensam, houve em Cabo Verde muitos movimentos, muitos grupos e tentativas de resistência ao partido único, com muitas iniciativas para a abertura democrática do regime. A UCID, sobretudo na emigração, é um exemplo concreto dessa resistência. Também, ainda nos fins dos anos 70, apareceu um movimento que ficou conhecido por movimento fracionista ou trotskista, do qual eu fiz parte, que integrava muitos jovens militantes da independência e vários segmentos de militantes políticos nacionais, e que depois se transformou em vários outros grupos, nomeadamente o CCPD - Ciclo do Caboverdianos para a Democracia, que surgiu em Portugal em 81 e 82 mas que possuía ramificações internas aqui no país. A Liga Caboverdiana para os direitos do Homem, que surgiu em 82, é um outro exemplo dos vários movimentos que se organizaram em prol da implementação de um regime democrático.
Mesmo dentro do próprio regime, verificaram-se alguns ensaios para uma abertura política à democracia. Lembro-me que, no congresso de 1988 do PAICV, surge a ideia de abertura da economia, mas que, na altura, não reunião consenso por parte da direção do partido. Na minha perspetiva, só quando já não era suportável, por parte da sociedade, o regime de partido único, é que surge a declaração de fevereiro de 90 para a abertura política, numa altura em que o PAICV já não possuía condições para controlar os acontecimentos, sobretudo do movimento popular e político que exigiu eleições, as quais culminam com a vitória esmagadora do MpD, a 3 de janeiro de 1991.

Na altura, a conjuntura específica que se vivia nos regimes socialistas, nomeadamente com a desagregação dos membros do Pacto de Varsóvia, com a política da perestroika e com a queda do muro de Berlim, não terá acelerado a mudança política em Cabo Verde?
É evidente que, aqueles movimentos populares e políticos pró democráticos que nos anos 90 irromperam em Cabo Verde, encontravam-se inseridos num contexto internacional que os favoreceu. Verificou-se nessa altura, uma desagregação de muitos regimes totalitários e autoritários, o que, sem dúvida, contribuiu para o fomento das mesmas ideias em Cabo Verde. Contudo, foi necessário haver condições internas que possibilitassem essa mudança, e na altura, Cabo Verde possuía essas condições.
Apesar de tudo, o regime de partido único em Cabo Verde, colhia alguma simpatia do ponto de vista externo. Lembro-me que, por exemplo, em Portugal, contactávamos círculos democráticos portugueses, e as pessoas não se mostravam muito recetivas a uma mudança de regime em Cabo Verde, argumentando que a situação do país era diferente da de outros países com o mesmo tipo de políticas; que era um regime muito mais suave. Por conseguinte, houve alguma dificuldade em fazer valer os nossos argumentos e atrair a simpatia desses círculos democráticos internacionais. Se não houvesse esse contexto internacional e essa erosão do partido único aqui em Cabo Verde, não era previsível que se registassem alterações no modelo político interno.
Repare-se que, deste o período da abertura politica de fevereiro de 90 até às eleições de 13 de janeiro de 1991, isto é, em menos de um ano, dá-se a formação de uma nova força política - o MpD - capaz de ir a eleições com o PAICV de forma organizada e estruturada e derrota-lo com uma maioria qualificada superior a dois terços, impondo inclusivamente o ritmo das alterações constitucionais. Tal, constitui prova que havia uma maturação e uma preparação da sociedade cabo-verdiana para um novo regime democrático.
Um dado curioso é que, apesar do MpD ter surgido no panorama político com força, não era ainda um partido político legalmente constituído. Apesar disso, fruto do descontentamento popular, o PAICV viu-se obrigado a negociar com o MpD o calendário eleitoral. Curioso é verificar que, a ideia inicial do PAICV não era a realização de eleições imediatas, mas sim de fazer uma espécie de período de estágio, marcando as eleições para quatro anos depois. Contudo, a dinâmica popular de rejeição a um regime de partido único foi de tal forma contra, que levou a que o PAICV, em conjunto com o MpD, alterasse o caderno eleitoral. Nessas legislativas, o MpD ganha com mais de dois terços dos votos e nas presidenciais, Mascarenhas Monteiro, que na altura até nem era uma figura muito conhecida, derrota Aristides Pereira, que até aí se julgava como um candidato invencível.
Por isso, penso que o processo democrático aconteceu devido a uma conjunção favorável de fatores internos e de fatores externos.

Este modelo constitucional, que legitima o multipartidarismo em Cabo Verde, é para si um modelo acabado, ou há ainda trabalho a realizar na sua consolidação?
A Constituição, sobretudo num país que cresce baseado na cultura democrática, traduz valores, opções e crenças que representam um consenso social. O que posso dizer, é que, no meu entender e em rigor, Cabo Verde só é Estado constitucional, com a participação democrática de 1992. Houveram Constituições anteriores, nomeadamente a de 1980, que institucionalizaram o regime de partido único, através do célebre artigo 4º e onde se dizia que o Partido era a força dirigente da sociedade e do Estado. Contudo, o Estado cabo-verdiano dos anos oitenta, não estava fundado, nem limitado por essa Constituição. Foi a legitimidade do movimento de libertação nacional, que por sua vez, legitimou a própria constituição.
Na Constituição de 80, o Presidente da República quando tomava posse e prestava juramento, fazia-o afirmando "fidelidade aos princípios objetivos do PAICV e à Constituição". A Constituição, aparecia em segundo lugar. Por isso, um Estado que está limitado e fundado na Constituição, só surgiu verdadeiramente em 1992.
É evidente que a Constituição é um texto aberto. Vai funcionando a par das dinâmicas sociais e políticas. Neste preciso momento, a Constituição é que baliza o poder político. Não há democracia cabo-verdiana fora da Constituição e muito menos contra ela. No fundo, o quadro do exercício da democracia cabo-verdiana está regulado pela Constituição. Contudo, como ainda não somos um país de grande cultura constitucional, é natural que hajam dinâmicas na vida político-partidária, que podem não estar sempre de acordo com o texto da Constituição.
A Constituição que temos, tem servido em pleno à afirmação da democracia e o processo do nosso desenvolvimento. Por mais críticas, reparos e tentações que hajam para alterar a Constituição - ás vezes até por uma questão de moda - o sistema político existente em Cabo Verde, tem provado que é o adequado ao país, onde a democracia tem sido exercida sem grandes sobressaltos nem crises políticas. Os pequenos desentendimentos que têm existido, são resolvidos no quadro constitucional que possuímos. Podemos aprimorá-la, fazendo alguns reparos, conforme anteriormente já o fizemos. Ainda em 2010, procedemos a uma Revisão Constitucional, o que é natural para acompanhar o evoluir da democracia, contudo, não vejo necessidade de a alterar, pois tem sido um instrumento vital na estabilidade do país, servindo como quadro regulador do desenvolvimento político, social e cultural de Cabo Verde.

No entanto, uma coisa são as regras democráticas e outra completamente diferente, são as suas práticas. No quadro político nacional, as discussões, quando muito exacerbadas, não poderão descredibilizar as boas práticas da democracia e dos políticos?
É bom que em Cabo Verde haja exigência e ambição com a nossa democracia. Já tivemos eleições em que os resultados são contestados, havendo necessidade da intervenção de um órgão jurisdicional. Aconteceu, por exemplo, nas eleições presidenciais de 2001, onde eu era candidato. Essas eleições decidiram-se com uma vitória do Comandante Pedro Pires por 12 votos, após um recurso instaurado no Supremo Tribunal de Justiça.
Ainda agora, nas últimas eleições autárquicas, houve uma impugnação num determinado círculo eleitoral, em que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu anular as eleições em duas mesas. Se analisarmos países com experiências democráticas anteriores à nossa, alguns deles com democracias mais consolidadas que a nossa, também vemos que há contestação de resultados eleitorais. Talvez em Cabo Verde essas questões sejam mais empoladas, por se tratarem de situações novas. No entanto, existem instituições para cuidar dessa arbitragem. Uma vez decididas nas instâncias competentes, todos as acatam sem quaisquer complicações.

Podemos então deduzir, que passados estes trinta e sete anos, os cabo-verdianos, na sua generalidade, estão satisfeitos com o modelo político do país?
Penso que sim. Apesar da nossa democracia não ser perfeita, pois também não existem países com democracias perfeitas, o processo democrático em Cabo Verde é irreversível. Sei que é uma afirmação polémica, mas, no meu entender, a esmagadora maioria dos cabo-verdianos, já interiorizou a ideia de que, um dos critérios que legitima o exercício do poder é precisamente o voto popular. Em Cabo Verde, qualquer outra ideia que não esta, não terá aceitação, o que torna irreversível o nosso processo democrático, isto é, não há possibilidade de retrocesso dos modelos políticos atuais. Mesmo que haja alguma tentação para tal, estou convencido que os cabo-verdianos lutarão por repor os valores e os ideais dos princípios da democracia.

Cabo Verde tem registado grandes progressos nos últimos anos. Acha que tal facto é resultado apenas da boa governação, ou existem outros fatores favoráveis, como por exemplo, a ajuda externa?
Numa avaliação objetiva, sou da opinião que, nestes 37 anos, fizemos um percurso interessante. Muitos países tiveram mais apoios que os que nós tivemos, e não conseguiram os resultados que atingimos, o que quer dizer que há algum mérito da nossa parte.
Independentemente dos regimes e dos sistemas de governo que temos tido até aqui e da avaliação, mais ou menos positiva, dos sucessivos governos que tivemos, objetivamente, Cabo Verde desenvolveu-se. É algo que qualquer pessoa pode comprovar. Alguém que fizesse o retrato de Cabo Verde de 74 e o comparasse ao Cabo Verde de hoje, não encontraria termos de comparação. São duas realidades diferentes, quer ao nível da educação, saúde, justiça, infraestruturas portuárias, aeroportuárias, viárias e mesmo em termos de desenvolvimento político. O problema que podemos colocar, do ponto de vista histórico, é a avaliação que se pode fazer ao nível da prestação do regime de partido único e do regime pluralista depois de 90, isto é, se com os apoios que tivemos, poderíamos ter feito mais. Se fizemos o máximo que estava ao nossa alcance ou se poderíamos ter feito ainda mais. A questão que se coloca, não é se nos desenvolvemos; o que devemos questionar é se crescemos na medida do desejável com os meios que tivemos.
Apesar de termos evoluído muito, creio que precisamos de dar um grande salto qualitativo, isto é, deixarmo-nos de preocupar com o que já fizemos e tentarmos ser ainda mais ambiciosos, traçando metas cada vez mais elevadas. Devemos tentar atingir os níveis de países que estão à nossa frente. Há Estados que são ilhas como nós e que, em todos os indicadores, estão à nossa frente. Nós temos é que atingir esses mesmos níveis e se possível, até os ultrapassar. Essa é que deverá ser a ambição nacional a qual deverá ser protagonizada, em primeira mão, pelo Presidente da República.
Temos que nos desenvolver preservando o ambiente, crescendo mais horizontalmente, ou seja, atenuando cada vez mais as desigualdades sociais e as assimetrias regionais, que são, neste momento, pouco razoáveis. Devemos priorizar mais a qualidade de vida e o bem-estar de todos os cabo-verdianos. Esse é o grande desafio dos governos de Cabo Verde.

O facto de Cabo Verde ser atualmente considerado um país de desenvolvimento médio, faz com que deixe de beneficiar de alguns apoios por parte da comunidade internacional. Sem esses apoios internacionais, que soluções poderá Cabo Verde encontrar para continuar o seu desenvolvimento e o seu progresso?
Os números que apresentámos e que espelham o crescimento e desenvolvimento do país nos últimos anos, fizeram com que fossemos classificados de país de rendimento médio. Devemos assumir este facto, não como um problema, mas como um desafio, que também proporciona oportunidades. Hoje, vive-se uma crise internacional financeira e económica que atinge, sobretudo, os países europeus da zona euro. A nossa economia é muito dependente da economia desses países, o que quer dizer que, também aqui recebemos os impactos negativos dessa crise. Contudo, a ajuda externa clássica também está a acabar. A ajuda em donativos findou e daqui a pouco tempo, irá também findar a ajuda externa ao nível de financiamentos concessionais, o que quer dizer que, temos que repensar e reavaliar os nossos modelos de economia e de desenvolvimento. Temos que pensar em desenvolver uma economia capaz de gerar internamente os fluxos financeiros indispensáveis ao nosso crescimento, resolvendo um dos grandes problemas de Cabo Verde, que é o desemprego. Para o fazermos, temos que apostar numa economia de serviços, virada para a exportação, explorando e potenciando as vantagens corporativas que possuímos: o facto de sermos uma democracia de referência, de possuirmos estabilidade política e institucional e de termos uma posição geoestratégica importante e interessante do ponto de vista internacional.
Possuímos ainda potencial ao nível do turismo. No entanto, nesta área, devemos ter cuidado com o modelo que queremos implementar, por forma a que esta atividade não delapide os recursos e condicione o nosso meio ambiente. Terá que ser um turismo capaz de impulsionar a economia local, nomeadamente ao nível da agricultura, pecuária e pescas. Devemos igualmente diversificar a nossa oferta turística, introduzindo outro tipo de modelos que não apenas o turismo balnear. Temos potencial no turismo de montanha, no turismo rural, no turismo de saúde e no turismo cultural e científico, através da captação para Cabo Verde de potenciais congressos e conferências internacionais.
Apostar numa industria ligeira vocacionada para as exportações e na prestação de serviços internacionais como as telecomunicações, são outra área em que podemos apostar. É, sem dúvida, um desafio difícil e complexo. Temos já uma taxa de desemprego, nomeadamente junto dos jovens e das mulheres, que atinge números preocupantes.
Nos últimos anos, temos crescido a uma taxa média de 5%, o que, segundo os entendidos na matéria, para nos aproximarmos de referências como as Maurícias ou as Seicheles, devíamos crescer de forma contínua, num mínimo de 10 anos, a uma taxa superior à que temos vindo a registar. Num ambiente de crise, é um objetivo difícil, é um grande desafio para o país, mas é o único caminho que temos.

Tocou no problema do desemprego, que arrasta consigo outras consequências graves de cariz social. Tem-se verificado uma desagregação da base familiar cabo-verdiana, que era a pedra basilar da sociedade. Consequência direta desta desagregação, é a delinquência juvenil e a perda de valores morais por parte das futuras gerações. Em que medita este fenómeno poderá contribuir para a desestruturação da nossa sociedade?
A partir do momento que temos taxas de desemprego elevadas, sobretudo junto da camada jovem, levantam-se problemas delicados em termos sociais. Cabo Verde tem uma população muito jovem, com aproximadamente dois terços dos seus habitantes com idade inferior a 35 anos. Nesta faixa, há um elevado número de jovens, com menos de 18 anos que, fruto da elevada taxa de desemprego, vê condicionado o presente, e em último análise o futuro das suas vidas. A única forma de reduzirmos estes números, que poderão colocar em causa o nosso crescimento e desenvolvimento, é através do crescimento da nossa economia. Não temos outra alternativa.
Por outro lado, temos de apostar em políticas fortes na área da educação e formação técnica e profissional, pois para atingirmos um novo patamar de desenvolvimento, precisamos de possuir quadros altamente qualificados. Temos feito muito ao nível do ensino, nomeadamente na educação, que é uma das nossas grandes conquistas, mas é talvez o setor onde a aposta tem que ser ainda maior, apostando agora numa educação de ponta, de qualidade e com um maior grau de exigência.
Um outro grande desafio que enfrentamos, fruto direto da problemática do desemprego e que pode afetar a economia, o desempenho do turismo e a nossa coesão social, é a redução dos níveis de insegurança, principalmente nos meios urbanos principais, para uma dimensão comunitariamente suportável, pois atualmente, os níveis verificados são já preocupantes.

Qual a importância da diáspora cabo-verdiana para a resolução de alguns dos problemas do país?
Logo à partida, essas comunidades no exterior, tornam-nos numa nação maior. Essa ideia de uma nação diaspórica, dá-nos uma dimensão que não teríamos, caso fossemos constituídos apenas pelos cabo-verdianos do arquipélago. Mesmo do ponto de vista dos processos políticos, a diáspora foi, e continua a ser muito importante. Por exemplo, para o processo da independência, boa parte dos quadros cabo-verdianos que ingressaram nas fileiras da luta na Guiné-Bissau, foram recrutados em Portugal, França, Holanda e Estados Unidos da América. Muitos grupos de luta pela independência na clandestinidade, fizeram-no na diáspora. Tiveram uma importância grande na democratização do país, através de vários grupos de resistência e oposição, que trouxeram novas ideias e valores.
Durante muito tempo, a própria sobrevivência de muitas famílias cabo-verdianas deveu-se à contribuição da diáspora, nomeadamente através das remessas dos emigrantes. Há anos em que, o volume dessas remessas, chegam a ultrapassar o volume da ajuda externa da cooperação internacional.
Por todos estes motivos, ao longo da nossa história, a diáspora cabo-verdiana tem-se mostrado de vital importância para o crescimento e desenvolvimento do país. No entanto, temos que começar a pensar de maneira diferente. A partir de uma ligação mais forte entre as ilhas e a diáspora, temos que criar políticas públicas eficazes e inteligentes que potenciem o capital intelectual, científico, técnico e financeiro dessas comunidades no exterior, incentivando o investimento direto nos processos de desenvolvimento de Cabo Verde.

Como vê a relação do Estado Cabo Verdiano com os outros Estados, e como pode Cabo Verde tirar vantagens desses relacionamentos?
Cabo Verde, apesar de ser um país pequeno, tem todas as condições humanas, culturais e sociais para ser um país com apetência para lidar bem com outros povos e outros Estados. Temos bem presente a permuta e a cooperação com os outros. Temos presença na CPLP, na União Africana, na CDO, nas Nações Unidas entre outras. A essas instâncias, podemos oferecer um país com estabilidade política e institucional, onde há respeito pelas leis e cujas pessoas são afáveis, competentes e com vontade de aprender. Adicionando a estes fatores a nossa posição geoestratégica que poderá servir de ponte a outros mercados, penso que temos potencial para nos tornarmos um país com condições de receber investimentos de todo o género.
                                           
Que mensagem deixaria a todos os cabo-verdianos?
Gostaria que soubessem que somos um país com futuro. Cabo Verde, fruto da sua democracia, das suas competências e do seu povo, tem condições para se tornar, a médio prazo, num país desenvolvido. Para alcançarmos esse objetivo, que é o de todos nós, temos que continuar a trabalhar, empenhando-nos por construir um Estado cada vez mais coeso onde cada cabo-verdiano se sinta orgulhoso do trabalho realizado.

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