Jorge Carlos Fonseca
Presidente da República de Cabo Verde
Erigir o futuro da nação
Jorge Carlos de Almeida Fonseca, nasceu no
Mindelo a 20 de outubro de 1950. Jurista de profissão, foi eleito a 9 de
setembro de 2011 Presidente da República de Cabo Verde. Com um percurso
político iniciado na luta de libertação nacional, Jorge Carlos Fonseca foi,
entre 1975 e 1977, Diretor Geral da Emigração de Cabo Verde. Entre 1977 e 1979,
ocupou funções de secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ao
que se seguiu um período de algum afastamento da vida política, aproveitado
profissionalmente para lecionar, primeiro na Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa (1982-1990) e depois no Instituto de Medicina Legal,
também na cidade de Lisboa. Entre 1991 e 1993, regressa à vida política ativa,
ocupando a pasta de Ministro dos Negócios estrangeiros. Autor de vários
trabalhos na área do direito, Jorge Carlos Fonseca foi inúmeras vezes condecorado
pelo Estado de Cabo Verde. É um dos titulares do Estatuto de Combatente da
Liberdade e da Pátria.
No seu entender, na época colonial, o
pensamento generalizado dos intelectuais e nacionalistas era lutar pela
independência ou simplesmente reclamar mais justiça, mais igualdade e melhores
condições sociais para o povo cabo-verdiano?
A luta pela independência de Cabo Verde
fez-se num contexto histórico muito específico. Penso que dificilmente
poderemos falar de um pensamento independentista estruturado, antes da criação
do PAIGC, na Guiné-Bissau. É claro que antes disso, houveram alguns movimentos
mais ou menos político-culturais pela afirmação da autonomia de Cabo Verde,
muitos deles num quadro de autonomia regional, subjacente a Portugal.
A radicalização pela separação e
consequente luta pela independência, com um pensamento estruturado e
organizado, só surge com criação do PAIGC, o que quer dizer que, se o objetivo
era a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, essa luta foi sempre
pensada, contextualizada e operacionalizada num quadro teórico de unidade
africana.
Se pensarmos no ideal de Amílcar Cabral,
verificamos que a sua teorização surge num contexto de afirmação de África. Neste
sentido, penso que podemos afirmar que houve uma influência do pan-africanismo
no processo de independência, sobretudo se pensarmos que, já em 1945, no
congresso de Manchester, já com a presença de Nkrumah e Kenyatta, a ideia de
"África para os africanos", e mesmo algumas ideias de Cabral,
nomeadamente a "africanização dos espíritos", começavam a ter forma.
Daí que a luta pela independência, se tenha realizado num quadro pela unidade
africana, e talvez por isso, surgiu a ideia de uma luta com base num cenário de
unidade entre a Guiné e Cabo Verde.
Evidentemente que esta unidade, obedeceu a
outro tipo de razões, nomeadamente de estratégia política e diplomática, mas
sem dúvida que tem a ver com essa perspetiva mais geral de unidade africana.
Essa estratégia da unidade, muito
defendida por Amílcar Cabral e que levou ao pensamento e mais tarde à ligação
ideológica à Guiné-Bissau, não terá retirado aos cabo-verdianos a liderança dos
seus destinos, nomeadamente nas negociações dos termos da independência nacional?
Essa ideia de segundo plano de
Cabo Verde nas lutas pela independência, tem a ver com as circunstâncias
concretas desses movimentos. Quando se optou pela luta armada, o mais visível e
estrategicamente mais adequado às aspirações dos povos, era a luta
desencadear-se no continente, mais concretamente nas matas da Guiné-Bissau.
Historicamente e pelos dados que tenho, pensou-se igualmente numa luta nas
ilhas. Inclusivamente, houveram quadros cabo-verdianos que foram formados para
um desembarque militar nas ilhas, tentando transpor para Cabo Verde a teoria do foquismo de
Che Guevara, que consistia em criar focos de revolução, neste caso adaptados a
Cabo Verde. Contudo, chegou-se à conclusão que não era viável, nem o
desembarque nem a luta armada, aqui nas ilhas de Cabo Verde.
Penso que não foi tanto uma questão de
estratégia, mas sim uma questão de eficácia e pragmatismo em se atingirem os
objetivos. De qualquer forma, a luta foi feita por guineenses, mas também por
cabo-verdianos, muitos deles a lutar na frente da teorização do conflito.
Em Cabo Verde e mesmo na diáspora
cabo-verdiana, a luta funcionou noutros moldes, mais concretamente através de
ações clandestinas de enfraquecimento do regime colonial. Do ponto de vista
externo, era mais comum falar-se na luta na Guiné-Bissau, no entanto, não creio
que tenha sido por razões estratégicas ou por alguma ideia de resignação em
relação ao conflito, que não houve mais protagonismo por parte dos
cabo-verdianos.
O facto de, logo após reunidas as
condições de afirmação da independência em Cabo Verde, ter havido uma adesão
popular extraordinária à luta, mostra que os cabo-verdianos também tinham
presente a ideia da separação, da autonomia e da criação de uma identidade
própria, que não a imposta pelo regime.
A esta distância, acha que era possível
viabilizar esta visão política de Amílcar Cabral, relativamente à união dos
dois povos, quer em termos políticos, quer em termos culturais e económicos?
Creio que a ideia de unidade entre a
Guiné-Bissau e Cabo Verde, era um objetivo e um conceito que obedecia a uma
visão estratégica de luta. Talvez naquele contexto histórico, onde já haviam
lutas de outros povos africanos pela sua autonomia e independência,
diplomaticamente talvez fosse mais fácil enquadrar a independência da
Guiné-Bissau e de Cabo Verde num argumento de emancipação dos povos africanos.
Houve um esforço de fundamentação desse projeto de unidade, através de
critérios históricos e culturais, mas sobretudo, através de uma definição de
estratégia de luta.
Acredito que essa ideia não tenha vingado,
nomeadamente aqui em Cabo Verde, pelo facto de haverem diferenças visíveis
entre os dois povos, sobretudo ao nível das dinâmicas sociais e dos processos
de formação histórico-sociais. Ainda hoje há um problema na nação guineense,
face à diversidade das etnias do seu povo, o qual lhes dificulta a construção
do Estado. Em Cabo Verde, a nação precedeu o Estado. A nação cabo-verdiana
existe muito antes da independência, muito antes do PAIGC. Muito antes da luta,
já existia uma nação cabo-verdiana, mais ou menos sólida, com critérios de
identidade próprios, designadamente a língua, o modo se ser e de estar, as
tradições e a cultura. Este é um elemento forte da nossa identidade que não
existia, na época, na Guiné-Bissau.
Estes estados de evolução
histórico-sociais diferentes, levaram a que a ideia não vingasse em Cabo Verde
e que, na oportunidade que houve para a sociedade cabo-verdiana se pronunciar,
esta a tenha renunciado. Lembro-me que, a quando do Golpe de Estado de 1980 na
Guiné-Bissau, houve festa aqui em Cabo Verde, pois o povo sentiu esse momento
como uma espécie de alívio.
Alguns poderão dizer que o projeto talvez
não tenha sido bem explicado ou fundamentado. A minha opinião é que, não havia
uma grande teorização desta ideia. Mesmo junto dos dirigentes do PAIGC, tanto
da Guiné como de Cabo Verde, haviam muitas dúvidas e reservas em relação ao
projeto de união. Talvez não se falasse muito, mas em círculos privados e
restritos, sabia-se que haviam muitas hesitações quanto às próprias bases
teóricas da unidade entre os dois países, sobretudo quando se pensava em
unidade de Estados.
Creio que o fim desse projeto, não tem a
ver com a morte de Cabral, como alguns teorizam. Quando Amílcar Cabral morreu,
a ideia continua, pelo menos como um projeto oficial, mas não haviam condições
sociais, culturais nem políticas para que projeto vingasse, e efetivamente, o
projeto não vingou.
Lembra-se do que sentiu nesse dia 5 de
julho de 1975?
Quando se dá a independência de Cabo
Verde, eu tinha 24 anos de idade, mas já com sete anos de militância na
clandestinidade no PAIGC, a lutar pela independência. Como jovem, sonhava com
esse momento de libertação, mas não nego que, por vezes, tinha dificuldade em
acreditar que algum dia esse momento chegaria. Quando ocorre o 25 de abril em
Portugal, a ideia que a independência poderia ser algo de realizável, torna-se
mais evidente. Antes desse momento, era apenas uma luta por ideais de justiça,
igualdade e equidade para nos podermos afirmar como entidade autónoma no mundo.
O dia da independência, passei-o nos
Estados Unidos da América. Fui representar Cabo Verde no estado de
Massachusetts, onde ainda hoje existe uma comunidade muito forte de
cabo-verdianos. Fui eu que hasteei a bandeira de Cabo Verde na celebração da
independência. Foi um sentimento muito forte de felicidade e alegria, sobretudo
por poder ter estado num ambiente de muitos amigos e ter tido a possibilidade
de içar a nossa bandeira, nesse momento tão importante da nossa história.
Entretanto, entrou-se numa nova era, com
novas responsabilidades. Foi preciso definir um modelo constitucional e
político para a altura. Acha que era possível, logo a seguir à independência,
desenhar-se um modelo diferente para a Constituição de Cabo Verde?
Penso que, na altura, a resposta a essa
pergunta, era extremamente difícil. Atualmente, talvez seja mais fácil de
responder. É sempre possível dizer que se podia fazer de forma diferente, mas à
distância, vejo que no contexto preciso e concreto em que ocorreu a
independência, num âmbito de clara e forte supremacia do PAIGC, e também, pelo
menos aparentemente, de um apoio muito forte e entusiástico das populações ao
partido e ao ideário da independência, seria muito difícil obtermos a soberania
num quadro que não aquele em que se verificou. Ao nível da Organização da
Unidade Africana e das Nações Unidas, o PAIGC já tinha sido reconhecido como o
único movimento representativo da luta pela libertação. Haviam na altura outras
organizações, mas eram muito mais frágeis e sem apoios internacionais, por isso
tiveram muitas dificuldades em afirmar-se.
Com a Revolução de Abril em Portugal,
houve um outro fator que pesou, que foi a aliança forte entre o PAIGC e o
Movimento das Forças Armadas português.
Após a proclamação da independência num
quadro de liderança do PAIGC, viveu-se, até 1991, num cenário de regime de
partido único.
Será que poderia ter sido diferente?
Talvez, no entanto, também não era fácil a
abertura política, embora pense que esta pudesse ter ocorrido mais cedo. Claro
que tudo isto não é fácil de demonstrar, dado o contexto político da época. O
certo é que, a forma como os cabo-verdianos abraçaram o movimento popular e
político que levou à irrupção democrática nos anos 90, dá-nos a ideia que a
sociedade há muito que estaria preparada para abraçar a democracia.
Cabo Verde, devido a condições específicas
da sua sociedade, nomeadamente pelo seu processo histórico de formação, pelas
elites intelectuais e culturais que possuía e possui, e pelo contacto que a
vasta diáspora manteve com outros regimes já democráticos, foi sempre um espaço
aberto a outros valores e culturas. Por isso, penso que os cabo-verdianos
estariam preparados para eleger a democracia, bem antes dos anos 90. Tanto
assim é que, contrariamente ao que muitos pensam, houve em Cabo Verde muitos
movimentos, muitos grupos e tentativas de resistência ao partido único, com
muitas iniciativas para a abertura democrática do regime. A UCID, sobretudo na
emigração, é um exemplo concreto dessa resistência. Também, ainda nos fins dos
anos 70, apareceu um movimento que ficou conhecido por movimento fracionista ou
trotskista, do qual eu fiz parte, que integrava muitos jovens militantes da
independência e vários segmentos de militantes políticos nacionais, e que depois
se transformou em vários outros grupos, nomeadamente o CCPD - Ciclo do
Caboverdianos para a Democracia, que surgiu em Portugal em 81 e 82 mas que
possuía ramificações internas aqui no país. A Liga Caboverdiana para os
direitos do Homem, que surgiu em 82, é um outro exemplo dos vários movimentos
que se organizaram em prol da implementação de um regime democrático.
Mesmo dentro do próprio regime,
verificaram-se alguns ensaios para uma abertura política à democracia.
Lembro-me que, no congresso de 1988 do PAICV, surge a ideia de abertura da
economia, mas que, na altura, não reunião consenso por parte da direção do
partido. Na minha perspetiva, só quando já não era suportável, por parte da
sociedade, o regime de partido único, é que surge a declaração de fevereiro de
90 para a abertura política, numa altura em que o PAICV já não possuía
condições para controlar os acontecimentos, sobretudo do movimento popular e
político que exigiu eleições, as quais culminam com a vitória esmagadora do
MpD, a 3 de janeiro de 1991.
Na altura, a conjuntura específica que se
vivia nos regimes socialistas, nomeadamente com a desagregação dos membros do
Pacto de Varsóvia, com a política da perestroika e com a queda do muro de
Berlim, não terá acelerado a mudança política em Cabo Verde?
É evidente que, aqueles movimentos
populares e políticos pró democráticos que nos anos 90 irromperam em Cabo
Verde, encontravam-se inseridos num contexto internacional que os favoreceu.
Verificou-se nessa altura, uma desagregação de muitos regimes totalitários e
autoritários, o que, sem dúvida, contribuiu para o fomento das mesmas ideias em
Cabo Verde. Contudo, foi necessário haver condições internas que
possibilitassem essa mudança, e na altura, Cabo Verde possuía essas condições.
Apesar de tudo, o regime de partido único
em Cabo Verde, colhia alguma simpatia do ponto de vista externo. Lembro-me que,
por exemplo, em Portugal, contactávamos círculos democráticos portugueses, e as
pessoas não se mostravam muito recetivas a uma mudança de regime em Cabo Verde,
argumentando que a situação do país era diferente da de outros países com o
mesmo tipo de políticas; que era um regime muito mais suave. Por conseguinte,
houve alguma dificuldade em fazer valer os nossos argumentos e atrair a
simpatia desses círculos democráticos internacionais. Se não houvesse esse
contexto internacional e essa erosão do partido único aqui em Cabo Verde, não
era previsível que se registassem alterações no modelo político interno.
Repare-se que, deste o período da abertura
politica de fevereiro de 90 até às eleições de 13 de janeiro de 1991, isto é,
em menos de um ano, dá-se a formação de uma nova força política - o MpD - capaz
de ir a eleições com o PAICV de forma organizada e estruturada e derrota-lo com
uma maioria qualificada superior a dois terços, impondo inclusivamente o ritmo
das alterações constitucionais. Tal, constitui prova que havia uma maturação e
uma preparação da sociedade cabo-verdiana para um novo regime democrático.
Um dado curioso é que, apesar do MpD ter
surgido no panorama político com força, não era ainda um partido político
legalmente constituído. Apesar disso, fruto do descontentamento popular, o
PAICV viu-se obrigado a negociar com o MpD o calendário eleitoral. Curioso é
verificar que, a ideia inicial do PAICV não era a realização de eleições
imediatas, mas sim de fazer uma espécie de período de estágio,
marcando as eleições para quatro anos depois. Contudo, a dinâmica popular de
rejeição a um regime de partido único foi de tal forma contra, que levou a que
o PAICV, em conjunto com o MpD, alterasse o caderno eleitoral. Nessas
legislativas, o MpD ganha com mais de dois terços dos votos e nas
presidenciais, Mascarenhas Monteiro, que na altura até nem era uma figura muito
conhecida, derrota Aristides Pereira, que até aí se julgava como um candidato
invencível.
Por isso, penso que o processo democrático
aconteceu devido a uma conjunção favorável de fatores internos e de fatores
externos.
Este modelo constitucional, que legitima o
multipartidarismo em Cabo Verde, é para si um modelo acabado, ou há ainda
trabalho a realizar na sua consolidação?
A Constituição, sobretudo num país que
cresce baseado na cultura democrática, traduz valores, opções e crenças que
representam um consenso social. O que posso dizer, é que, no meu entender e em
rigor, Cabo Verde só é Estado constitucional, com a participação democrática de
1992. Houveram Constituições anteriores, nomeadamente a de 1980, que
institucionalizaram o regime de partido único, através do célebre artigo 4º e
onde se dizia que o Partido era a força dirigente da sociedade e do Estado.
Contudo, o Estado cabo-verdiano dos anos oitenta, não estava fundado, nem
limitado por essa Constituição. Foi a legitimidade do movimento de libertação
nacional, que por sua vez, legitimou a própria constituição.
Na Constituição de 80, o Presidente da
República quando tomava posse e prestava juramento, fazia-o afirmando
"fidelidade aos princípios objetivos do PAICV e à Constituição". A
Constituição, aparecia em segundo lugar. Por isso, um Estado que está limitado
e fundado na Constituição, só surgiu verdadeiramente em 1992.
É evidente que a Constituição é um texto
aberto. Vai funcionando a par das dinâmicas sociais e políticas. Neste preciso
momento, a Constituição é que baliza o poder político. Não há democracia
cabo-verdiana fora da Constituição e muito menos contra ela. No fundo, o quadro
do exercício da democracia cabo-verdiana está regulado pela Constituição.
Contudo, como ainda não somos um país de grande cultura constitucional, é
natural que hajam dinâmicas na vida político-partidária, que podem não estar
sempre de acordo com o texto da Constituição.
A Constituição que temos, tem servido em
pleno à afirmação da democracia e o processo do nosso desenvolvimento. Por mais
críticas, reparos e tentações que hajam para alterar a Constituição - ás vezes
até por uma questão de moda - o sistema político existente em Cabo Verde, tem
provado que é o adequado ao país, onde a democracia tem sido exercida sem
grandes sobressaltos nem crises políticas. Os pequenos desentendimentos que têm
existido, são resolvidos no quadro constitucional que possuímos. Podemos
aprimorá-la, fazendo alguns reparos, conforme anteriormente já o fizemos. Ainda
em 2010, procedemos a uma Revisão Constitucional, o que é natural para acompanhar
o evoluir da democracia, contudo, não vejo necessidade de a alterar, pois tem
sido um instrumento vital na estabilidade do país, servindo como quadro
regulador do desenvolvimento político, social e cultural de Cabo Verde.
No entanto, uma coisa são as regras
democráticas e outra completamente diferente, são as suas práticas. No quadro
político nacional, as discussões, quando muito exacerbadas, não poderão
descredibilizar as boas práticas da democracia e dos políticos?
É bom que em Cabo Verde haja exigência e
ambição com a nossa democracia. Já tivemos eleições em que os resultados são
contestados, havendo necessidade da intervenção de um órgão jurisdicional.
Aconteceu, por exemplo, nas eleições presidenciais de 2001, onde eu era
candidato. Essas eleições decidiram-se com uma vitória do Comandante Pedro
Pires por 12 votos, após um recurso instaurado no Supremo Tribunal de Justiça.
Ainda agora, nas últimas eleições
autárquicas, houve uma impugnação num determinado círculo eleitoral, em que o
Supremo Tribunal de Justiça entendeu anular as eleições em duas mesas. Se
analisarmos países com experiências democráticas anteriores à nossa, alguns
deles com democracias mais consolidadas que a nossa, também vemos que há
contestação de resultados eleitorais. Talvez em Cabo Verde essas questões sejam
mais empoladas, por se tratarem de situações novas. No entanto, existem
instituições para cuidar dessa arbitragem. Uma vez decididas nas instâncias
competentes, todos as acatam sem quaisquer complicações.
Podemos então deduzir, que passados estes
trinta e sete anos, os cabo-verdianos, na sua generalidade, estão satisfeitos
com o modelo político do país?
Penso que sim. Apesar da nossa democracia
não ser perfeita, pois também não existem países com democracias perfeitas, o
processo democrático em Cabo Verde é irreversível. Sei que é uma afirmação
polémica, mas, no meu entender, a esmagadora maioria dos cabo-verdianos, já
interiorizou a ideia de que, um dos critérios que legitima o exercício do poder
é precisamente o voto popular. Em Cabo Verde, qualquer outra ideia que não
esta, não terá aceitação, o que torna irreversível o nosso processo
democrático, isto é, não há possibilidade de retrocesso dos modelos políticos
atuais. Mesmo que haja alguma tentação para tal, estou convencido que os
cabo-verdianos lutarão por repor os valores e os ideais dos princípios da
democracia.
Cabo Verde tem registado grandes progressos
nos últimos anos. Acha que tal facto é resultado apenas da boa governação, ou
existem outros fatores favoráveis, como por exemplo, a ajuda externa?
Numa avaliação objetiva, sou da opinião
que, nestes 37 anos, fizemos um percurso interessante. Muitos países tiveram
mais apoios que os que nós tivemos, e não conseguiram os resultados que
atingimos, o que quer dizer que há algum mérito da nossa parte.
Independentemente dos regimes e dos
sistemas de governo que temos tido até aqui e da avaliação, mais ou menos
positiva, dos sucessivos governos que tivemos, objetivamente, Cabo Verde
desenvolveu-se. É algo que qualquer pessoa pode comprovar. Alguém que fizesse o
retrato de Cabo Verde de 74 e o comparasse ao Cabo Verde de hoje, não
encontraria termos de comparação. São duas realidades diferentes, quer ao nível
da educação, saúde, justiça, infraestruturas portuárias, aeroportuárias,
viárias e mesmo em termos de desenvolvimento político. O problema que podemos
colocar, do ponto de vista histórico, é a avaliação que se pode fazer ao nível
da prestação do regime de partido único e do regime pluralista depois de 90,
isto é, se com os apoios que tivemos, poderíamos ter feito mais. Se fizemos o
máximo que estava ao nossa alcance ou se poderíamos ter feito ainda mais. A
questão que se coloca, não é se nos desenvolvemos; o que devemos questionar é
se crescemos na medida do desejável com os meios que tivemos.
Apesar de termos evoluído muito, creio que
precisamos de dar um grande salto qualitativo, isto é, deixarmo-nos de
preocupar com o que já fizemos e tentarmos ser ainda mais ambiciosos, traçando
metas cada vez mais elevadas. Devemos tentar atingir os níveis de países que
estão à nossa frente. Há Estados que são ilhas como nós e que, em todos os
indicadores, estão à nossa frente. Nós temos é que atingir esses mesmos níveis
e se possível, até os ultrapassar. Essa é que deverá ser a ambição nacional a
qual deverá ser protagonizada, em primeira mão, pelo Presidente da República.
Temos que nos desenvolver preservando o
ambiente, crescendo mais horizontalmente, ou seja, atenuando cada vez mais as
desigualdades sociais e as assimetrias regionais, que são, neste momento, pouco
razoáveis. Devemos priorizar mais a qualidade de vida e o bem-estar de todos os
cabo-verdianos. Esse é o grande desafio dos governos de Cabo Verde.
O facto de Cabo Verde ser atualmente
considerado um país de desenvolvimento médio, faz com que deixe de beneficiar
de alguns apoios por parte da comunidade internacional. Sem esses apoios
internacionais, que soluções poderá Cabo Verde encontrar para continuar o seu
desenvolvimento e o seu progresso?
Os números que apresentámos e que espelham
o crescimento e desenvolvimento do país nos últimos anos, fizeram com que
fossemos classificados de país de rendimento médio. Devemos assumir
este facto, não como um problema, mas como um desafio, que também proporciona
oportunidades. Hoje, vive-se uma crise internacional financeira e económica que
atinge, sobretudo, os países europeus da zona euro. A nossa economia é muito
dependente da economia desses países, o que quer dizer que, também aqui
recebemos os impactos negativos dessa crise. Contudo, a ajuda externa clássica
também está a acabar. A ajuda em donativos findou e daqui a pouco tempo, irá
também findar a ajuda externa ao nível de financiamentos concessionais, o que
quer dizer que, temos que repensar e reavaliar os nossos modelos de economia e
de desenvolvimento. Temos que pensar em desenvolver uma economia capaz de gerar
internamente os fluxos financeiros indispensáveis ao nosso crescimento,
resolvendo um dos grandes problemas de Cabo Verde, que é o desemprego. Para o
fazermos, temos que apostar numa economia de serviços, virada para a
exportação, explorando e potenciando as vantagens corporativas que possuímos: o
facto de sermos uma democracia de referência, de possuirmos estabilidade
política e institucional e de termos uma posição geoestratégica importante e
interessante do ponto de vista internacional.
Possuímos ainda potencial ao nível do
turismo. No entanto, nesta área, devemos ter cuidado com o modelo que queremos
implementar, por forma a que esta atividade não delapide os recursos e
condicione o nosso meio ambiente. Terá que ser um turismo capaz de impulsionar
a economia local, nomeadamente ao nível da agricultura, pecuária e pescas.
Devemos igualmente diversificar a nossa oferta turística, introduzindo outro
tipo de modelos que não apenas o turismo balnear. Temos potencial no turismo de
montanha, no turismo rural, no turismo de saúde e no turismo cultural e
científico, através da captação para Cabo Verde de potenciais congressos e
conferências internacionais.
Apostar numa industria ligeira vocacionada
para as exportações e na prestação de serviços internacionais como as
telecomunicações, são outra área em que podemos apostar. É, sem dúvida, um
desafio difícil e complexo. Temos já uma taxa de desemprego, nomeadamente junto
dos jovens e das mulheres, que atinge números preocupantes.
Nos últimos anos, temos crescido a uma
taxa média de 5%, o que, segundo os entendidos na matéria, para nos
aproximarmos de referências como as Maurícias ou as Seicheles, devíamos crescer
de forma contínua, num mínimo de 10 anos, a uma taxa superior à que temos vindo
a registar. Num ambiente de crise, é um objetivo difícil, é um grande desafio
para o país, mas é o único caminho que temos.
Tocou no problema do desemprego, que
arrasta consigo outras consequências graves de cariz social. Tem-se verificado
uma desagregação da base familiar cabo-verdiana, que era a pedra basilar da
sociedade. Consequência direta desta desagregação, é a delinquência juvenil e a
perda de valores morais por parte das futuras gerações. Em que medita este
fenómeno poderá contribuir para a desestruturação da nossa sociedade?
A partir do momento que temos taxas de
desemprego elevadas, sobretudo junto da camada jovem, levantam-se problemas
delicados em termos sociais. Cabo Verde tem uma população muito jovem, com
aproximadamente dois terços dos seus habitantes com idade inferior a 35 anos.
Nesta faixa, há um elevado número de jovens, com menos de 18 anos que, fruto da
elevada taxa de desemprego, vê condicionado o presente, e em último análise o
futuro das suas vidas. A única forma de reduzirmos estes números, que poderão
colocar em causa o nosso crescimento e desenvolvimento, é através do
crescimento da nossa economia. Não temos outra alternativa.
Por outro lado, temos de apostar em
políticas fortes na área da educação e formação técnica e profissional, pois
para atingirmos um novo patamar de desenvolvimento, precisamos de possuir
quadros altamente qualificados. Temos feito muito ao nível do ensino,
nomeadamente na educação, que é uma das nossas grandes conquistas, mas é talvez
o setor onde a aposta tem que ser ainda maior, apostando agora numa educação de
ponta, de qualidade e com um maior grau de exigência.
Um outro grande desafio que enfrentamos,
fruto direto da problemática do desemprego e que pode afetar a economia, o
desempenho do turismo e a nossa coesão social, é a redução dos níveis de
insegurança, principalmente nos meios urbanos principais, para uma dimensão
comunitariamente suportável, pois atualmente, os níveis verificados são já
preocupantes.
Qual a importância da diáspora
cabo-verdiana para a resolução de alguns dos problemas do país?
Logo à partida, essas comunidades no
exterior, tornam-nos numa nação maior. Essa ideia de uma nação diaspórica,
dá-nos uma dimensão que não teríamos, caso fossemos constituídos apenas pelos
cabo-verdianos do arquipélago. Mesmo do ponto de vista dos processos políticos,
a diáspora foi, e continua a ser muito importante. Por exemplo, para o processo
da independência, boa parte dos quadros cabo-verdianos que ingressaram nas
fileiras da luta na Guiné-Bissau, foram recrutados em Portugal, França, Holanda
e Estados Unidos da América. Muitos grupos de luta pela independência na
clandestinidade, fizeram-no na diáspora. Tiveram uma importância grande na
democratização do país, através de vários grupos de resistência e oposição, que
trouxeram novas ideias e valores.
Durante muito tempo, a própria
sobrevivência de muitas famílias cabo-verdianas deveu-se à contribuição da
diáspora, nomeadamente através das remessas dos emigrantes. Há anos em que, o
volume dessas remessas, chegam a ultrapassar o volume da ajuda externa da cooperação
internacional.
Por todos estes motivos, ao longo da nossa
história, a diáspora cabo-verdiana tem-se mostrado de vital importância para o
crescimento e desenvolvimento do país. No entanto, temos que começar a pensar
de maneira diferente. A partir de uma ligação mais forte entre as ilhas e a
diáspora, temos que criar políticas públicas eficazes e inteligentes que
potenciem o capital intelectual, científico, técnico e financeiro dessas
comunidades no exterior, incentivando o investimento direto nos processos de
desenvolvimento de Cabo Verde.
Como vê a relação do Estado Cabo Verdiano
com os outros Estados, e como pode Cabo Verde tirar vantagens desses
relacionamentos?
Cabo Verde, apesar de ser um país pequeno,
tem todas as condições humanas, culturais e sociais para ser um país com
apetência para lidar bem com outros povos e outros Estados. Temos bem presente
a permuta e a cooperação com os outros. Temos presença na CPLP, na União
Africana, na CDO, nas Nações Unidas entre outras. A essas instâncias, podemos oferecer
um país com estabilidade política e institucional, onde há respeito pelas leis
e cujas pessoas são afáveis, competentes e com vontade de aprender. Adicionando
a estes fatores a nossa posição geoestratégica que poderá servir de ponte a
outros mercados, penso que temos potencial para nos tornarmos um país com
condições de receber investimentos de todo o género.
Que mensagem deixaria a todos os
cabo-verdianos?
Gostaria que soubessem que somos um país
com futuro. Cabo Verde, fruto da sua democracia, das suas competências e do seu
povo, tem condições para se tornar, a médio prazo, num país desenvolvido. Para
alcançarmos esse objetivo, que é o de todos nós, temos que continuar a
trabalhar, empenhando-nos por construir um Estado cada vez mais coeso onde cada
cabo-verdiano se sinta orgulhoso do trabalho realizado.
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