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Caros amigos,
No ano passado, pouco tempo depois de ter
assumido o papel de Presidente da República, através do qual o actor não se
identifica com a personagem mas é ele próprio a personagem, recebi um honroso
convite desta instituição, que dá pelo nome de Mindelact, para estar aqui nesta
festa do Teatro. Na ocasião, uma vez que não podia estar presente, assumi o
compromisso de compartilhar convosco, neste ano, o inigualável ambiente que só
o teatro, só vocês, podem proporcionar. É pois com um sentimento misto de privilégio
e de satisfação que aqui me encontro para esta confraternização.
Aliás, o convite para estar neste palco e
neste ambiente fez-me desembrulhar do registo de memória tempos em que fui, a
par de estudante, actor de teatro, participando em várias peças, no Liceu
«Adriano Moreira», quase sempre sob a orientação de Mário Santos, um português
exilado em Cabo Verde e professor de História ao tempo. Lembro-me, entre outras
peças, de «Auto de Alma» em que eu representava o «diabo» e contracenava com o
«anjo» representado por Odete Macedo; de «Auto de Mofina Mendes», creio que
também «Auto da Barca…»; cheguei a fazer um monólogo, representando o papel de
clown. Participei, também, em peças de teatro musical organizadas pelo Centro
Paroquial, na Praia. A minha paixão pelo teatro era tão grande que, numa ida a
Portugal, fui tentado a ser actor de teatro em jeito de profissional numa
companhia da época, mas os meus pais fizeram-me logo desistir da ideia, pois na
altura ser actor de teatro era considerado coisa menor, bom era ser «doutor»
(na altura queria fazer matemática ou inglês).
A minha presença neste ambiente não deixa
de ser, também, uma representação, provavelmente naquilo que este conceito tem
de mais sublime, elevado e, contraditoriamente, concreto. De facto sou,
simultaneamente, uma pessoa concreta cujo espírito se alimenta da emoção que
apenas o génio criativo pode proporcionar e a cristalização de algo que,
felizmente, já é um lugar-comum no nosso país, o reconhecimento da excelência,
que é o Festival de Teatro Mindelact.
Se por vezes, por dever de ofício, o
Presidente da República personifica a Nação, em circunstâncias nem sempre
prazerosas, ou mesmo dolorosas, quando essa função é assumida num contexto em
que o papel de representante de todos os cabo-verdianos contem um importante
elemento da vida que é o prazer, a emoção, a arte, isto é um dos ingredientes
mais humanos da pessoa, esse papel passa a ter, para mim, significado muito especial.
Nos últimos tempos não tenho podido, como
desejaria, dedicar-me muito a actividades artísticas e culturais. Por isso
quando sou “obrigado” a fazê-lo, em circunstâncias especiais como esta, faço-o,
confesso, com um entusiasmo quase pueril.
Porém, estar aqui hoje, contém, mas
ultrapassa, de longe, as dimensões do prazer. Nós estamos hoje perante um
processo, um movimento, que convida à reflexão. Em primeiro lugar gostaria de
ressaltar, sem qualquer hesitação, que a marca deste processo, que o Mindelact
sintetiza e que a população de S. Vicente abraça, é o facto de ele assumir que
tão importante quanto o alimento do corpo é o da alma.
Sim, precisamos investir no alimento do
nosso corpo. Precisamos ter condições que garantam a nossa sobrevivência. Temos
de procurar assegurar as condições materiais para a nossa existência.
Mas não haja ilusões. Se os nossos
esforços se concentrarem apenas nessa dimensão, poderemos não ir muito longe. O
Mindelact prova que é necessário e é possível investir na arte pela arte. Tal
perspectiva não contradiz a visão que preconiza que a cultura pode e deve ter
reflexos na economia. Acredito mesmo que essa é a via que poderá permitir que a
arte, e a cultura de um modo geral, se associem harmonicamente à economia sem serem
por ela desnaturadas. A arte deve existir por si mesma. O aproveitamento das
suas potencialidades económicas não deve, de forma alguma condicioná-la, pois
se assim não for, mata-se a sua essência que deve ser a liberdade absoluta, o
compromisso com a criatividade e nada mais.
Todavia, nada impede que, ao atingir
qualidade assinalável, ela arraste paralelamente actividades de cunho
económico, ou que estas se organizem para melhor aproveitar as possibilidades
que a cultura e arte podem abrir. Pelo contrário essa possibilidade é até
desejável.
O que tem de ser salvaguardado, a todo
custo, e neste aspecto o Mindelact tem feito escola, é a total independência
estética, a ausência de qualquer compromisso que não seja com a criatividade,
com o que, se bem me lembro, alguém caracterizou como a provocação do
«espanto». Naturalmente o percurso, essa construção, não é fácil e muito menos
automática.
Mas não haja ilusões. As lógicas da
criação (que geralmente não tem lógica) e as da economia nem sempre regem-se
pelos mesmos parâmetros e por vezes podem até seguir vias opostas.
Se não sou um seu defensor incondicional,
também não sou radicalmente contra a chamada indústria cultural. Porém, insisto
que a cultura não deve ser encarada apenas, ou sobretudo, na perspectiva de
riquezas materiais que pode proporcionar.
Ela vale por si. A arte vale por si e é
exactamente isso que este festival tem demonstrado. O elevado nível atingido é
uma excelente lição nessa linha, que estes 18 anos têm proporcionado.
Do meu ponto de vista um dos elementos
fulcrais desse sucesso é a clareza de objectivos que tem caracterizado o
festival e que assenta na compreensão da centralidade da arte na vida das
pessoas. Mindelact ensina-nos que a Arte, no caso o teatro, é algo essencial
pelo qual se deve bater. É um elemento fundamental na vida das pessoas e por
isso deve ser encarada com toda a seriedade.
Apenas esta percepção, exercitada em todas
as suas vertentes, pode explicar a longevidade, desta odisseia, o aprimoramento
constante da sua qualidade, a capacidade de mobilizar gente de países diversos,
demonstrando que de facto é possível conceder um rosto humano à globalização.
Mindelo orgulha-se de Mindelact, das
mulheres, dos homens e dos jovens que generosamente dão tudo de si para que
esta cidade viva, anualmente, estes memoráveis dias em que a criatividade e a
fantasia são um elemento muito marcante da realidade.
São Vicente, que tem uma longa e arreigada
ligação ao teatro, orgulha-se de Mindelact, pois constata a cada dia que
através do festival, que é o coroar de tudo o que se constrói nessa área ao
longo do ano, a tradição mantém-se, renova-se, recria-se.
Cabo Verde orgulha-se de Mindelact, pois
cada vez mais os actores de todas as ilhas e o público de todos os recantos
sentem que o processo é um sucesso, que a presença de grupos de diversas ilhas
no festival se tem revelado um ganho que tem de ser mantido e potenciado.
Acredita-se que esta dinâmica possa levar a Rincão, passando por Porto Inglês,
S. Filipe, Fundo das Figueiras, Coculi e Nova Sintra.
Mindelact traz o mundo a Cabo Verde e
reconhece a sua dívida ao homenagear, como fez este ano, importantes criadores
internacionais.
Tendo a criatividade por exigência
orientadora e a qualidade por barómetro, o rigor e o profissionalismo surgem
como esteios essenciais para que as possibilidades, sejam aproveitadas e
maximizadas, as energias ampliadas. Apenas desta forma tem sido possível trazer
aos palcos e às ruas de S. Vicente o que de melhor em matéria teatral, se faz
no país e no mundo.
Numa mensagem que no ano passado enviei do
exterior ao festival ressaltava o facto de ele apontar caminhos de uma abrangência
exemplar, porque muito rara entre nós: formações diversas em todas as áreas
relacionadas com o teatro, envolvimento de público de todas as idades,
divulgação de criações de todos os géneros, preocupação com o público dos
bairros mais periféricos, envolvimento de grupos teatrais de diversas ilhas.
Esta visão é uma das maiores contribuições
que este festival tem proporcionado à ilha, ao país.
Estes dias de muita alegria, intercâmbio,
cumplicidade, emoção, descoberta, são, sem dúvida, a congregação de muita
energia, suor, ansiedade generosidade e sobretudo de muito afecto.
A todos os que participaram na
organização, a todos os actores que vivem nesta ilha, aos que vieram de outras
ilhas e muito especialmente aos que aportaram de outras terras, o nosso muito
obrigado.
Penso que todos estaremos de acordo em
que, se uma empreitada desta natureza que é o resultado do trabalho e da
abnegação de muita gente tivesse que ter (e tem) um rosto, uma alma, estes
seriam indubitavelmente os de João Branco.
Ao declarar encerrada a 18ª Edição do
Festival Internacional do Teatro Mindelact, é com prazer que abandono o
protocolo e termino a minha intervenção com um abraço ao Mindelact na pessoa do
actor, encenador e director artístico João Branco.
Muito obrigado.
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