segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Discurso proferido por Sua Excelência o Presidente da República, por ocasião da Cerimónia de Abertura do Ciclo de Conferências sobre Justiça Criminal, Praia, 28 de Janeiro de 2013

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Senhor Ministro da Justiça,
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
Senhora Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial,
Senhor Procurador-Geral da República,
Senhora Bastonária da Ordem dos Advogados,
Senhor Director Nacional da Polícia Nacional,
Senhor Director Nacional da Polícia Judiciária,
Senhores Procuradores-Gerais Adjuntos,
Senhores Procuradores de Círculo,
Senhoras e Senhores Conferencistas e Moderadores,
Senhoras e Senhores magistrados Judiciais e do Ministério Público,
Senhoras e Senhores Advogados,
Senhoras e Senhores jornalistas e profissionais da Comunicação Social,

Minhas Senhoras e Meus Senhores,


O tema central desta conferência sobre a Justiça Criminal coloca uma questão que, ao longo dos tempos, se tem posto sistematicamente face ao aparecimento de novas formas de criminalidade associadas ao desenvolvimento tecnológico das sociedades: como adequar o sistema de justiça penal aos desafios exigidos pela nova fenomenologia criminalidade. Em particular, o sistema de processo penal, já que este constitui inarredavelmente, como há muito tempo acentuou HENKEL, e em primeira mão, direito constitucional aplicado.


Há precisamente dez anos atrás, tive oportunidade de analisar esta problemática na qualidade de conferencista numas “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais” realizadas na FDL.

A mesma reflexão foi feita, entre nós, pela comunidade jurídica cabo-verdiana e pelos decisores políticos aquando da aprovação no actual Código de processo penal, em 2005, tendo sido adoptadas as soluções que na altura se mostravam adequadas e suficientes ao combate da criminalidade dentro do nosso quadro constitucional.

Porém, oito anos passados, mantém-se a actualidade do tema. Agora, como há dez anos atrás, na reflexão desta matéria, verificava-se um ponto de partida prefigurado que sugere que a criminalidade actual, organizada, impõe reformas aos sistemas de processo penal concebidos num tempo em que não era conhecida ou não tinha impactos relevantes do ponto de vista dos sentimentos comunitários dominantes e das preocupações essenciais dos Estados; ela postula uma definição do que deve ser o teor de tais reformas e os limites que elas deverão observar num quadro, que se concretiza no que, com mais ou menos rigor conceptual, se denomina Estado de Direito Democrático.

O tema central desta conferência tem sido objecto de estudos por parte de investigadores da ciência criminal, de preocupação dos governantes políticos, de apetência dos media, da atenção e acção dos agentes do sistema judiciário, da curiosidade de estatísticos, mas sobretudo, de um discurso, menos teórico do que ideológico, sobre a necessidade do combate da nova criminalidade, mais organizada e sofisticada, em nome da defesa das instituições políticas, sociais e económicas e da exigência de manutenção da confiança das comunidades nos processos democráticos e nos valores do Estado de Direito.

Aplaudo a decisão do Ministério da Justiça de chamar para esta conferência juristas de outros países para apresentarem as suas experiências na busca do novo paradigma de justiça criminal porquanto está sobejamente reconhecido que a criminalidade actual, marcada pela violência dos seus meios e propósitos e pela sofisticação da sua organização e métodos atinge tanto os países mais avançados no seu desenvolvimento global, mas também os países em vias de desenvolvimento, sem esquecer os países em situação de conflito armado ou em ressurgimento de revoluções sociais. Países estes que pela sua vulnerabilidade intrínseca são objecto privilegiado da apetência de organizações de delinquentes que se aproveitam da desorganização política e da urgente necessidade de capitais estrangeiros que os governos sentem para intentar reformas das economias nacionais. Em causa estão delitos como os de tráfico de estupefacientes, terrorismo, tráfico de embriões, de crianças e de mulheres, de material nuclear, corrupção política e administrativa ou o branqueamento de capitais. Delitos praticados por organizações capazes de estender as suas actividades para além das fronteiras nacionais e de iludir os esforços dos Estados para as controlar, senão mesmo tornar o «Estado-nação… derruído na sua soberania e … mínimo pelo poder económico global...» incapaz, pois, de «oferecer respostas concretas e rápidas aos crimes dos poderosos»; delitos representativos de uma criminalidade nova, resultado a que não é alheio o fenómeno da globalização da economia e do sistema financeiro, assim como a dos meios de comunicação, que se traduz na criação de um gigantesco mercado mundial e que faz com que a evolução da economia se traduza também pela demanda, a par de bens e serviços legais, de bens proibidos, de bens e serviços ilegais: armas, drogas, dinheiro de origem ilícita, materiais radioactivos, órgãos humanos, embriões, obras de arte, mão-de-obra imigrada, etc.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Efectivamente, hoje, mais do que em qualquer outra altura da nossa história, faz todo o sentido pensar profundamente a justiça criminal, pois que vivemos um tempo em que as sociedades reclamam cada vez mais por uma justiça eficaz e oportuna, com capacidade de conter a criminalidade a níveis razoáveis, comunitariamente suportáveis, mas também um tempo no qual existem factos e sentimentos de sinais contrários.

Se a realização da justiça criminal é um dos elementos essenciais da contenção da criminalidade e se ela tem de se adaptar às mudanças que ocorrem na sociedade e que encontram na sofisticação e audácia das organizações criminosas um dos seus indicadores mais significativos, não se pode alimentar a ilusão segundo a qual, apenas da eficiência na aplicação dos seus ensinamentos doutrinários depende essa contenção.
Na verdade, não obstante a sua autonomia, o direito penal está profundamente ligado a realidades sociais muito mais complexas que contribuem poderosamente para a conformação da actividade criminosa, nas suas diversas formas de manifestação.
Assim, sem negar a sua centralidade no combate à criminalidade, alhear-se dessa perspectiva implica uma visão redutora, amputadora da complexidade do fenómeno criminal que acaba atribuindo a esse ramo do direito um papel e uma responsabilidade muito maior do que as que verdadeiramente lhe cabem.
Amiúde os factos e sentimentos acima referidos, expressam-se através de posturas reducionistas que podem ser entendidas como consequências de alguma angústia resultante do impacto de aspectos, relativamente novos e violentos, que a criminalidade tem assumido.  

Na verdade, existe pressão considerável para o endurecimento das penas de prisão, para procedimentos penais mais simplificados e menos garantísticos, para o alargamento dos pressupostos da prisão preventiva e para a compressão dos direitos de uma forma geral. Este movimento, disseminado um pouco por todo o lado, encontra um ambiente favorável no eco dos atentados terroristas, do crescente desenvolvimento dos tráficos de pessoas, de armas e de estupefaciente, da corrupção política e administrativa e da lavagem de capitais, sem descurar outros tipos da chamada criminalidade organizada, que tendem a corroer os alicerces dos Estados, em especial os que se revêm nos princípios democráticos.

É, pois, fundamental termos presente que no Estado Democrático de Direito, enfrentar o ‘inimigo’ com um direito penal diferenciado de tipos abertos e imprecisos, com abusiva antecedência da tutela penal relativamente ao bem jurídico protegido e com penas extremamente duras – com desrespeito, portanto, aos princípios da legalidade, da humanidade e do devido processo legal, constitui um retrocesso civilizacional que não se justifica. Em primeiro lugar, por carência de resultados práticos, pois o ‘inimigo’ continua cada vez mais actuante. E, principalmente, porque o Estado de Direito tem como seu fundamento primeiro a afirmação da essencial dignidade do ser humano.

Senhor Ministro da Justiça
Senhoras e Senhores conferencistas e moderadores

Desde finais da década de 80, o mundo vem conhecendo profundas mudanças nos regimes políticos, com a implantação de Estados de Direito Democráticos em todos os continentes. E a democracia é um processo de afirmação da liberdade e da cidadania, que não se basta com a obtenção de um «mínimo». Ou seja, existe sempre uma preocupação contínua em aprofundar e reforçar a cidadania, em reconhecer novos direitos e novos espaços de afirmação e de livre desenvolvimento da pessoa humana.

É neste ambiente que a justiça criminal deve ser perspectivada, no meio de tendências, todas elas legítimas, mas contraditórias, umas com preocupação centrada na defesa dos direitos fundamentais numa época em que esta defesa começa a ser encarada como obstáculo ao combate à criminalidade, outras com a preocupação dirigida para a necessidade de se aumentar, a qualquer custo e preço, a eficácia dos meios preventivos e repressivos do crime.

Ao optarmos por viver em democracia e em liberdade, escolhemos uma forma de vida essencial. Ironia trágica seria permitir que o combate ao crime nos fizesse viver fora da democracia e sem liberdade! A escolha – e já tenho afirmado em várias ocasiões, mas não me canso de o repetir – não pode ser outra a não ser esta: combater com eficácia a criminalidade, mas sempre no quadro da democracia e sem pôr em causa o núcleo essencial e irredutível do Estado de direito.
Os trabalhos de preparação dos códigos penal e processual penal vigentes tiveram lugar, respectivamente, há  18 e 16 anos. Tempo demasiado longo, nos dias complexos e dinâmicos de hoje, para permanecerem intocados. Nós mesmo temos, há algum tempo, sufragado a necessidade de uma reavaliação da sua adequação e actualidade às exigências hodiernas doutrinárias, operacionais e de respostas a novas fenomenologias criminais. Estamos longe das épocas e tempos em que a vetustez dos códigos resistia a uma centena ou mais de anos.
Reformar, reavaliar, sim, com ousadia, com criatividade, mas com maturidade, sabedoria, sentido das exigências, qualidade, inteligência e lucidez reformistas e evitar tentações de fuga em frente, modismos inócuos ou obsessiva preocupação de dar satisfação a pressões populistas e demagógicas que, a prazo, se revelarão pior emenda que o soneto. E, naturalmente, respeito pela Constituição vigente.

A sociedade livre e democrática pode consentir numa certa compressão de direitos na medida em que ela se mostrar estritamente necessária para garantir um nível de combate à criminalidade que contenha os delitos num grau suportável pela comunidade. Mas já não será de forma alguma aceitável a tese segundo a qual consoante mais direitos e liberdades forem assegurados aos cidadãos, menor é a capacidade de combate à criminalidade! Que, por isso, se a sociedade pretender um elevado nível de combate ao crime, deve consentir na redução dos direitos.


A sociedade livre e democrática não pode ficar descaracterizada nos seus traços essenciais ao tomar sobre si esta gigantesca tarefa de combate à criminalidade.
A única forma de se combater o crime num Estado de Direito Democrática é respeitando os limites impostos pelo próprio Estado de Direito Democrático, os seus princípios e os seus valores fundamentais. É combater o crime dentro das barreiras do Estado de Direito Democrático e não fora delas.

Senhores Magistrados
Senhores Advogados
Minhas Senhoras e meus senhores

Tenho sempre afirmado que podemos – e devemos – fazer reformas legislativas ao nível da legislação penal e processual penal que permitam melhorar a nossa capacidade de combater o crime e de garantir a legalidade democrática e a paz social. Novos procedimentos e novos institutos podem ser pensados a esse propósito, assegurando uma resposta adequada aos desafios da criminalidade do nosso tempo. E essa reposta, como já o tenho afirmado em outras ocasiões, é tanto mais consistente quanto maior for a concertação entre as nações com interesse na matéria.

Na verdade, e para além de outros factores, é preciso não esquecer que os pequenos Estados apresentam maiores vulnerabilidades, pois que estão dotados, em regra, de menores recursos de combate e não dispõem, por si só, de condições, pela exiguidade do território e pelo número dos seus habitantes, de concretização plena e eficiente de certos institutos processuais, designadamente a protecção de testemunhas. Só a colaboração entre Estados permite e potencia a optimização deste e de outros mecanismos de resposta à criminalidade violenta e organizada. Na verdade, a protecção das testemunhas, no quadro de concertação entre os países, ganharia uma nova dimensão e poderia transformar-se num importante instrumento de combate a certo tipo de criminalidade.

Mas gostaria também de aqui exprimir a minha convicção que ainda estamos longe de termos experimentado e esgotado os novos institutos de prevenção e combate à criminalidade previstos na legislação vigente, substantiva e processual. Um simples olhar pelas leis vigentes e pela prática das autoridades judiciárias confirmam tal tese.

Uma outra questão importante merece ser realçada, mais uma vez: um exame racional demonstrará muito rapidamente que os principais constrangimentos à eficácia do combate ao crime residem prevalentemente na insuficiente qualificação dos meios de investigação e na disponibilização de recursos. Existe sempre uma tentação de imputar às leis as nossas próprias fragilidades, levando-nos a equacionar reformas legislativas sucessivas, sem ganhos significativos, quando não optamos por leis desnecessárias, repetidas, sobrepostas ou contraditórias, com prejuízos claros para o intérprete e aplicador do direito.

Precisamos de instalar uma outra capacidade científica no combate à criminalidade. Precisamos de laboratórios de nível elevado e de técnicos especializados. Necessitamos de técnicas e procedimentos de investigação modernos. Precisamos de agentes motivados e preparados. Por outras palavras: precisamos de mais recursos para o combate ao crime, o que é uma questão sempre complicada para um país com as limitações financeiras como é Cabo Verde.

Devemos investir mais na prevenção, na luta pela redução do consumo de estupefacientes, bem como na reabilitação de toxicodependentes, na educação, na reformulação dos planos curriculares e na informação pública. Todos temos o dever de promover valores de respeito pela legalidade, de cumprimento das normas de convivência social, de respeito para com as pessoas e instituições, pela dignidade da pessoa humana, pela liberdade e de pela tolerância. Trata-se de um problema de fundo que deve ser encarado, com programas credíveis e sustentáveis no tempo, que logicamente extravasam a esfera do direito penal. E tudo isso é perfeitamente compatível com o combate ao crime, feito com firmeza, com determinação, mas com a inteligência e a lucidez capazes de iluminar a preocupação fundamental da eficácia.

A problemática da criminalidade que assume aspectos muito semelhantes em diversas partes do globo, encontra capacidades diferente de resposta, como acima referimos, sendo os países de menores dimensões e recursos os mais vulneráveis.
Esta realidade impõe a necessidade de uma cooperação internacional muito estreita, com vistas a uma articulação operacional mas, sobretudo, a um reforço institucional e técnico essenciais ao combate ao crime.  
Da mesma forma que cada vez mais os criminosos actuam em redes, é crucial, especialmente para os países de reduzidas dimensões, como o nosso, esse tipo de articulação.
Mas para que esta articulação produza os efeitos desejados, devemos, a partir da nossa realidade concreta, ter ideias e propósitos claros no que concernente aos princípios a materializar e às perspectivas a concretizar.
Arriscamos repetir aqui o que escrevemos há dez anos atrás, por tal se nos mostrar ainda pertinente e adequado:
Os desafios impostos, nomeadamente ao direito penal (no seu todo), na adaptação aos novos tempos e às novas e sofisticadas formas de criminalidade, para além das razoáveis e equilibradas formas de «concordância prática» acima ilustradas, exigem o estudo aprofundado e imaginativo de mecanismos de adequação dos instrumentos da coacção penal à nova fenomenologia criminal, tanto no plano interno, quanto no supra-estatal; o que deverá conduzir a modelos distintos de investigação, à especialização de seus responsáveis, introdução de assessorias técnicas e científicas junto dos decisores judiciais, à maior consistência institucional e apetrechamento técnico-científico do Ministério Público e polícias criminais, a novos métodos de acesso e posterior tratamento da informação e à instauração de estruturas de colaboração e cooperação nos planos nacional e supra-estatal.

5. Como refere HASSEMER, «...o sentido próprio do Estado de Direito no campo da prevenção técnica é conseguir, sempre que possível, uma substituição da prevenção normativa… A política de segurança interna deve ser perspectivada para uma desistência das agravações de carácter jurídico e não unicamente, como até aqui, para o seu incremento». Do mesmo modo, a prevenção criminal deverá alargar-se e reforçar-se no próprio âmbito da actividade da Administração, «pelo aconselhamento, pela difusão de normas de procedimento e de estilo, por acção de sistemas de auditoria e por um maior estímulo ao controlo social», como diz CUNHA RODRIGUES.

Agradeço, assim, ao Senhor Ministro da Justiça pelo honroso convite que me dirigiu para presidir a cerimónia de abertura deste ciclo de conferências, que em boa hora vem contribuir para que juntos consigamos chegar às melhores soluções, procurando sintonizar os conhecimentos e a metodologia das ciências criminais com os desafios dos tempos de hoje e com os princípios básicos que enformam a organização do nosso Estado.

E Declaro aberto o “Ciclo de Conferência sobre a Justiça Criminal”.

Muito Obrigado.

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