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Senhor Ministro da Justiça,
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
Senhora Presidente do Conselho Superior da
Magistratura Judicial,
Senhor Procurador-Geral da República,
Senhora Bastonária da Ordem dos Advogados,
Senhor Director Nacional da Polícia Nacional,
Senhor Director Nacional da Polícia Judiciária,
Senhores Procuradores-Gerais Adjuntos,
Senhores Procuradores de Círculo,
Senhoras e Senhores Conferencistas e Moderadores,
Senhoras e Senhores magistrados Judiciais e do
Ministério Público,
Senhoras e Senhores Advogados,
Senhoras e Senhores jornalistas e profissionais da
Comunicação Social,
Minhas
Senhoras e Meus Senhores,
O tema central desta conferência sobre a Justiça
Criminal coloca uma questão que, ao longo dos tempos, se tem posto
sistematicamente face ao aparecimento de novas formas de criminalidade
associadas ao desenvolvimento tecnológico das sociedades: como adequar o
sistema de justiça penal aos desafios exigidos pela nova fenomenologia
criminalidade. Em particular, o sistema de processo penal, já que este
constitui inarredavelmente, como há muito tempo acentuou HENKEL, e em primeira
mão, direito constitucional aplicado.
Há precisamente dez anos atrás, tive oportunidade de analisar esta problemática na qualidade de conferencista numas “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais” realizadas na FDL.
A mesma reflexão foi feita, entre nós, pela comunidade
jurídica cabo-verdiana e pelos decisores políticos aquando da aprovação no
actual Código de processo penal, em 2005, tendo sido adoptadas as soluções que
na altura se mostravam adequadas e suficientes ao combate da criminalidade
dentro do nosso quadro constitucional.
Porém, oito anos passados, mantém-se a actualidade
do tema. Agora, como há dez anos atrás, na reflexão desta matéria,
verificava-se um ponto de partida prefigurado que sugere que a criminalidade
actual, organizada, impõe reformas aos sistemas de processo penal concebidos
num tempo em que não era conhecida ou não tinha impactos relevantes do ponto de
vista dos sentimentos comunitários dominantes e das preocupações essenciais dos
Estados; ela postula uma definição do que deve ser o teor de tais reformas e os
limites que elas deverão observar num quadro, que se concretiza no que, com
mais ou menos rigor conceptual, se denomina Estado de Direito Democrático.
O tema central desta conferência tem sido objecto de
estudos por parte de investigadores da ciência criminal, de preocupação dos
governantes políticos, de apetência dos media,
da atenção e acção dos agentes do sistema judiciário, da curiosidade de
estatísticos, mas sobretudo, de um discurso, menos teórico do que ideológico,
sobre a necessidade do combate da nova criminalidade, mais organizada e
sofisticada, em nome da defesa das instituições políticas, sociais e económicas
e da exigência de manutenção da confiança das comunidades nos processos
democráticos e nos valores do Estado de Direito.
Aplaudo a decisão do Ministério da Justiça de chamar
para esta conferência juristas de outros países para apresentarem as suas
experiências na busca do novo paradigma de justiça criminal porquanto está
sobejamente reconhecido que a criminalidade actual, marcada pela violência dos
seus meios e propósitos e pela sofisticação da sua organização e métodos atinge
tanto os países mais avançados no seu desenvolvimento global, mas também os
países em vias de desenvolvimento, sem esquecer os países em situação de
conflito armado ou em ressurgimento de revoluções sociais. Países estes que
pela sua vulnerabilidade intrínseca são objecto privilegiado da apetência de
organizações de delinquentes que se aproveitam da desorganização política e da
urgente necessidade de capitais estrangeiros que os governos sentem para
intentar reformas das economias nacionais. Em causa estão delitos como os de
tráfico de estupefacientes, terrorismo, tráfico de embriões, de crianças e de
mulheres, de material nuclear, corrupção política e administrativa ou o
branqueamento de capitais. Delitos praticados por organizações capazes de
estender as suas actividades para além das fronteiras nacionais e de iludir os
esforços dos Estados para as controlar, senão mesmo tornar o «Estado-nação…
derruído na sua soberania e … mínimo pelo poder económico global...» incapaz,
pois, de «oferecer respostas concretas e rápidas aos crimes dos poderosos»;
delitos representativos de uma criminalidade nova, resultado a que não é alheio
o fenómeno da globalização da economia e do sistema financeiro, assim como a
dos meios de comunicação, que se traduz na criação de um gigantesco mercado
mundial e que faz com que a evolução da economia se traduza também pela
demanda, a par de bens e serviços legais, de bens proibidos, de bens e serviços
ilegais: armas, drogas, dinheiro de origem ilícita, materiais radioactivos,
órgãos humanos, embriões, obras de arte, mão-de-obra imigrada, etc.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Efectivamente, hoje, mais do que em qualquer outra
altura da nossa história, faz todo o sentido pensar profundamente a justiça
criminal, pois que vivemos um tempo em que as sociedades reclamam cada vez mais
por uma justiça eficaz e oportuna, com capacidade de conter a criminalidade a
níveis razoáveis, comunitariamente suportáveis, mas também um tempo no qual
existem factos e sentimentos de sinais contrários.
Se a realização da justiça criminal é um dos
elementos essenciais da contenção da criminalidade e se ela tem de se adaptar
às mudanças que ocorrem na sociedade e que encontram na sofisticação e audácia
das organizações criminosas um dos seus indicadores mais significativos, não se
pode alimentar a ilusão segundo a qual, apenas da eficiência na aplicação dos
seus ensinamentos doutrinários depende essa contenção.
Na verdade, não obstante a sua autonomia, o direito
penal está profundamente ligado a realidades sociais muito mais complexas que
contribuem poderosamente para a conformação da actividade criminosa, nas suas
diversas formas de manifestação.
Assim, sem negar a sua centralidade no combate à
criminalidade, alhear-se dessa perspectiva implica uma visão redutora,
amputadora da complexidade do fenómeno criminal que acaba atribuindo a esse
ramo do direito um papel e uma responsabilidade muito maior do que as que
verdadeiramente lhe cabem.
Amiúde os factos e sentimentos acima referidos,
expressam-se através de posturas reducionistas que podem ser entendidas como
consequências de alguma angústia resultante do impacto de aspectos,
relativamente novos e violentos, que a criminalidade tem assumido.
Na verdade, existe pressão considerável para o
endurecimento das penas de prisão, para procedimentos penais mais simplificados
e menos garantísticos, para o alargamento dos pressupostos da prisão preventiva
e para a compressão dos direitos de uma forma geral. Este movimento,
disseminado um pouco por todo o lado, encontra um ambiente favorável no eco dos
atentados terroristas, do crescente desenvolvimento dos tráficos de pessoas, de
armas e de estupefaciente, da corrupção política e administrativa e da lavagem
de capitais, sem descurar outros tipos da chamada criminalidade organizada, que
tendem a corroer os alicerces dos Estados, em especial os que se revêm nos
princípios democráticos.
É, pois, fundamental termos presente que no Estado
Democrático de Direito, enfrentar o ‘inimigo’ com um direito penal diferenciado
de tipos abertos e imprecisos, com abusiva antecedência da tutela penal
relativamente ao bem jurídico protegido e com penas extremamente duras – com desrespeito,
portanto, aos princípios da legalidade, da humanidade e do devido processo
legal, constitui um retrocesso civilizacional que não se justifica. Em primeiro
lugar, por carência de resultados práticos, pois o ‘inimigo’ continua cada vez
mais actuante. E, principalmente, porque o Estado de Direito tem como seu
fundamento primeiro a afirmação da essencial dignidade do ser humano.
Senhor Ministro da
Justiça
Senhoras e Senhores
conferencistas e moderadores
Desde finais da década de 80, o mundo vem conhecendo
profundas mudanças nos regimes políticos, com a implantação de Estados de
Direito Democráticos em todos os continentes. E a democracia é um processo de
afirmação da liberdade e da cidadania, que não se basta com a obtenção de um
«mínimo». Ou seja, existe sempre uma preocupação contínua em aprofundar e
reforçar a cidadania, em reconhecer novos direitos e novos espaços de afirmação
e de livre desenvolvimento da pessoa humana.
É neste ambiente que a justiça criminal deve ser
perspectivada, no meio de tendências, todas elas legítimas, mas contraditórias,
umas com preocupação centrada na defesa dos direitos fundamentais numa época em
que esta defesa começa a ser encarada como obstáculo ao combate à criminalidade,
outras com a preocupação dirigida para a necessidade de se aumentar, a qualquer
custo e preço, a eficácia dos meios preventivos e repressivos do crime.
Ao optarmos por viver em democracia e em liberdade,
escolhemos uma forma de vida essencial. Ironia trágica seria permitir que o
combate ao crime nos fizesse viver fora da democracia e sem liberdade! A
escolha – e já tenho afirmado em várias ocasiões, mas não me canso de o repetir
– não pode ser outra a não ser esta: combater com eficácia a criminalidade, mas
sempre no quadro da democracia e sem pôr em causa o núcleo essencial e
irredutível do Estado de direito.
Os trabalhos de preparação dos códigos penal e
processual penal vigentes tiveram lugar, respectivamente, há 18 e 16 anos. Tempo demasiado longo, nos dias
complexos e dinâmicos de hoje, para permanecerem intocados. Nós mesmo temos, há
algum tempo, sufragado a necessidade de uma reavaliação da sua adequação e
actualidade às exigências hodiernas doutrinárias, operacionais e de respostas a
novas fenomenologias criminais. Estamos longe das épocas e tempos em que a
vetustez dos códigos resistia a uma centena ou mais de anos.
Reformar, reavaliar, sim, com ousadia, com
criatividade, mas com maturidade, sabedoria, sentido das exigências, qualidade,
inteligência e lucidez reformistas e evitar tentações de fuga em frente,
modismos inócuos ou obsessiva preocupação de dar satisfação a pressões
populistas e demagógicas que, a prazo, se revelarão pior emenda que o soneto.
E, naturalmente, respeito pela Constituição vigente.
A sociedade livre e democrática pode consentir numa
certa compressão de direitos na medida em que ela se mostrar estritamente
necessária para garantir um nível de combate à criminalidade que contenha os
delitos num grau suportável pela comunidade. Mas já não será de forma alguma
aceitável a tese segundo a qual consoante mais direitos e liberdades forem
assegurados aos cidadãos, menor é a capacidade de combate à criminalidade! Que,
por isso, se a sociedade pretender um elevado nível de combate ao crime, deve
consentir na redução dos direitos.
A sociedade livre e democrática não pode ficar
descaracterizada nos seus traços essenciais ao tomar sobre si esta gigantesca
tarefa de combate à criminalidade.
A única forma de se combater o crime num Estado de
Direito Democrática é respeitando os limites impostos pelo próprio Estado de
Direito Democrático, os seus princípios e os seus valores fundamentais. É
combater o crime dentro das barreiras do Estado de Direito Democrático e não
fora delas.
Senhores Magistrados
Senhores Advogados
Minhas Senhoras e meus senhores
Tenho sempre afirmado que podemos – e devemos –
fazer reformas legislativas ao nível da legislação penal e processual penal que
permitam melhorar a nossa capacidade de combater o crime e de garantir a
legalidade democrática e a paz social. Novos procedimentos e novos institutos
podem ser pensados a esse propósito, assegurando uma resposta adequada aos
desafios da criminalidade do nosso tempo. E essa reposta, como já o tenho
afirmado em outras ocasiões, é tanto mais consistente quanto maior for a
concertação entre as nações com interesse na matéria.
Na verdade, e para além de outros factores, é
preciso não esquecer que os pequenos Estados apresentam maiores
vulnerabilidades, pois que estão dotados, em regra, de menores recursos de
combate e não dispõem, por si só, de condições, pela exiguidade do território e
pelo número dos seus habitantes, de concretização plena e eficiente de certos
institutos processuais, designadamente a protecção de testemunhas. Só a
colaboração entre Estados permite e potencia a optimização deste e de outros
mecanismos de resposta à criminalidade violenta e organizada. Na verdade, a
protecção das testemunhas, no quadro de concertação entre os países, ganharia
uma nova dimensão e poderia transformar-se num importante instrumento de
combate a certo tipo de criminalidade.
Mas gostaria também de aqui exprimir a minha
convicção que ainda estamos longe de termos experimentado e esgotado os novos
institutos de prevenção e combate à criminalidade previstos na legislação
vigente, substantiva e processual. Um simples olhar pelas leis vigentes e pela
prática das autoridades judiciárias confirmam tal tese.
Uma outra questão importante merece ser realçada,
mais uma vez: um exame racional demonstrará muito rapidamente que os principais
constrangimentos à eficácia do combate ao crime residem prevalentemente na
insuficiente qualificação dos meios de investigação e na disponibilização de
recursos. Existe sempre uma tentação de imputar às leis as nossas próprias
fragilidades, levando-nos a equacionar reformas legislativas sucessivas, sem
ganhos significativos, quando não optamos por leis desnecessárias, repetidas,
sobrepostas ou contraditórias, com prejuízos claros para o intérprete e aplicador
do direito.
Precisamos de instalar uma outra capacidade
científica no combate à criminalidade. Precisamos de laboratórios de nível
elevado e de técnicos especializados. Necessitamos de técnicas e procedimentos
de investigação modernos. Precisamos de agentes motivados e preparados. Por
outras palavras: precisamos de mais recursos para o combate ao crime, o que é
uma questão sempre complicada para um país com as limitações financeiras como é
Cabo Verde.
Devemos investir mais na prevenção, na luta pela redução
do consumo de estupefacientes, bem como na reabilitação de toxicodependentes,
na educação, na reformulação dos planos curriculares e na informação pública.
Todos temos o dever de promover valores de respeito pela legalidade, de
cumprimento das normas de convivência social, de respeito para com as pessoas e
instituições, pela dignidade da pessoa humana, pela liberdade e de pela
tolerância. Trata-se de um problema de fundo que deve ser encarado, com
programas credíveis e sustentáveis no tempo, que logicamente extravasam a
esfera do direito penal. E tudo isso é perfeitamente compatível com o combate
ao crime, feito com firmeza, com determinação, mas com a inteligência e a
lucidez capazes de iluminar a preocupação fundamental da eficácia.
A problemática da criminalidade que assume aspectos
muito semelhantes em diversas partes do globo, encontra capacidades diferente
de resposta, como acima referimos, sendo os países de menores dimensões e
recursos os mais vulneráveis.
Esta realidade impõe a necessidade de uma cooperação
internacional muito estreita, com vistas a uma articulação operacional mas,
sobretudo, a um reforço institucional e técnico essenciais ao combate ao
crime.
Da mesma forma que cada vez mais os criminosos
actuam em redes, é crucial, especialmente para os países de reduzidas
dimensões, como o nosso, esse tipo de articulação.
Mas para que esta articulação produza os efeitos
desejados, devemos, a partir da nossa realidade concreta, ter ideias e
propósitos claros no que concernente aos princípios a materializar e às
perspectivas a concretizar.
Arriscamos repetir aqui o que escrevemos há dez anos
atrás, por tal se nos mostrar ainda pertinente e adequado:
Os desafios impostos, nomeadamente ao direito penal
(no seu todo), na adaptação aos novos tempos
e às novas e sofisticadas formas de criminalidade, para além das razoáveis
e equilibradas formas de «concordância prática» acima ilustradas, exigem o
estudo aprofundado e imaginativo de mecanismos de adequação dos instrumentos da
coacção penal à nova fenomenologia criminal, tanto no plano interno, quanto no
supra-estatal; o que deverá conduzir a modelos distintos de investigação, à
especialização de seus responsáveis, introdução de assessorias técnicas e
científicas junto dos decisores judiciais, à maior consistência institucional e
apetrechamento técnico-científico do Ministério Público e polícias criminais, a
novos métodos de acesso e posterior tratamento da informação e à instauração de
estruturas de colaboração e cooperação nos planos nacional e supra-estatal.
5. Como refere HASSEMER, «...o sentido próprio do
Estado de Direito no campo da prevenção técnica é conseguir, sempre que
possível, uma substituição da prevenção normativa… A política de segurança
interna deve ser perspectivada para uma desistência das agravações de carácter
jurídico e não unicamente, como até aqui, para o seu incremento». Do mesmo
modo, a prevenção criminal deverá alargar-se e reforçar-se no próprio âmbito da
actividade da Administração, «pelo aconselhamento, pela difusão de normas de
procedimento e de estilo, por acção de sistemas de auditoria e por um maior
estímulo ao controlo social», como diz CUNHA RODRIGUES.
Agradeço, assim, ao Senhor Ministro da Justiça pelo
honroso convite que me dirigiu para presidir a cerimónia de abertura deste
ciclo de conferências, que em boa hora vem contribuir para que juntos
consigamos chegar às melhores soluções, procurando sintonizar os conhecimentos
e a metodologia das ciências criminais com os desafios dos tempos de hoje e com
os princípios básicos que enformam a organização do nosso Estado.
E Declaro aberto o “Ciclo de Conferência sobre a
Justiça Criminal”.
Muito Obrigado.
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