Excelências,
Esta é a primeira vez que na qualidade
de Presidente da República presido a uma sessão solene de abertura do ano
judicial e me dirijo as vossas Excelências, Senhores Magistrados Judiciais e do
Ministério Público, Senhores Advogados, Senhores Oficiais de Justiça, vós que
sois a imagem primeira da Justiça.
Há quem afirme que a Justiça não é
servida ou administrada no abstracto. A Justiça seria administrada e realizada
em cada caso concreto e particular de que o juiz é obrigado a ocupar-se e
inscreve-se na solução do litígio que ele tem, por missão e por função, de
resolver. Pelo menos, estaríamos de acordo, no sentido das palavras de
Aristóteles, em como haveria «um justo superior, embora sendo o mesmo que o
justo». Esta actividade do juiz assume a forma num processo judicial, pelo que
o processo é o lugar, o momento e o modo da solução do litígio e no qual a
Justiça pode expressar-se, revelar-se. Compreende-se, por isso, a necessidade
das reformas processuais para que a Justiça esteja conforme aos valores
constitucionais e corresponda à expectativa dos cidadãos.
A Justiça ou a falta dela é reflectida e
sentida no quotidiano de cada um dos nossos cidadãos ao se confrontarem com a
procura, junto dos tribunais, de uma solução para um conflito social, mais ou
menos grave; tanto na humilde senhora que, vítima da violência doméstica, não
consegue, pese a existência de várias decisões judiciais, que o agressor seja
afastado da casa de morada de família e os bens comuns sejam partilhados e
retomar a sua vida, como naquela outra, que tendo ganho uma acção contra o
Estado, não consegue obter a execução da sentença para ser indemnizada e ver
restaurados os seus direitos ou na vítima de um crime violento que recorrendo
aos tribunais vê que o processo nunca é instruído e, muito menos, julgado ou, ainda,
daquela pessoa que é detida e vê a prisão preventiva sucessivamente prolongada
por alegada complexidade e sem vislumbrar o dia de julgamento.
O processo só tem significado através de
um julgamento definitivo que marca o seu termo e, por isso, a função de julgar
reveste-se da maior relevância na nossa sociedade e para cada cidadão que se
confronta com a justiça.
Os juízes (e poderíamos, com adaptações,
referir-nos a outros operadores da justiça) devem, por isso, estar preparados
científica, técnica e humanamente para a função de julgar, não bastando a mera
frequência de estágios ou institutos de formação, mas a segura disponibilidade
pessoal para o rigor e o método, a dedicação à causa pública e o bom senso para
incarnarem a qualidade de servidores da justiça. O juiz não é um funcionário,
mas titular de um órgão de soberania e que não deve ter preocupações de
“intendência” sindical.
A justiça tem a ver também com as
instituições e com a percepção da sua representação pelos cidadãos. O que
muitas chamamos representações colectivas. Tem, neste âmbito, razão o relatório
do CSM quando nos diz que «… quaisquer que sejam as dificuldades em definir
critérios de análise da performance do
sistema de justiça, maxime dos
tribunais, há dados que, empiricamente que seja, revelam uma situação de défice
da prestação jurisdicional. Está-se a referir, por um lado, a percepção da
sociedade que, de um modo geral, considera o sistema judicial bastante
ineficiente, e, por outro, as taxas de pendência e congestionamento que
registam, em muitos casos, curvas crescentes».
Sem decisões reconhecidamente justas,
sem uma justiça que gere confiança na comunidade, com a celeridade desejável e
adequada à afirmação de outros valores que o sistema também deve proteger e
afirmar, e acessível aos cidadãos, a coesão social e o sistema de crenças no
ideário democrático ficam abalados.
Minhas Senhoras, meus Senhores,
A justiça necessita de instituições
fortes, credíveis e respeitadas.
A força e a credibilidade das
instituições do sector da justiça só são adquiridas quando o seu funcionamento
for representado pelos cidadãos como sendo em tempo útil e oportuno, havendo um
bom desempenho com um razoável nível de resolução dos conflitos e uma
capacidade de intervenção rápida para responder aos problemas sociais que são
transpostos para o sistema de justiça, um elevado padrão de rigor e qualidade
das decisões e um atendimento crescente aos direitos antigos e novos que
reclamam protecção e defesa.
Tenho sempre defendido a necessidade uma
formação contínua dos agentes da Justiça, dos magistrados Judiciais e do
Ministério Público, dos Advogados e dos Oficiais de justiça.
Os servidores da justiça, todos sem
distinção, devem beneficiar de uma formação sólida organizada, assegurada ou
apoiada pelo Estado, para se poder ter em todos os sectores profissionais
competentes, diligentes e cientes dos seus deveres e direitos e que possam
garantir uma justiça qualitativamente boa e prestada em tempo e assegurar
níveis de desempenho indispensáveis à pacificação social.
Mas para a realização da Justiça é
também necessário dotar as suas instituições de meios necessários. Meios
materiais, instalações e recursos humanos. A dignidade das instituições da
República exige que as mesmas sejam dotadas de espaços físicos condignos ao
exercício das funções e à imagem que delas tem o ideário colectivo.
A lógica da racionalidade económica não
pode, por exemplo, impedir a aplicação efectiva da lei processual penal por não
se dispor de uma sala para instalação das sessões de recurso ou o funcionamento
da justiça constitucional por se entender que é dispendiosa, ou o adiamento da
instalação dos tribunais da Relação.
Respeitar as instituições significa a
compenetração de todos os servidores da justiça (todos, sem excepção, previstos
na Constituição e com a mesma dignidade) que são parceiros e comparticipantes
necessários para a construção da justiça num Estado de Direito democrático, com
funções e missões diferentes é certo, mas todos portadores dos valores da
Justiça e necessários para a preservação do modelo de justiça previsto na
Constituição. Respeitar as instituições significa a transparência de
procedimentos e do funcionamento da justiça, nomeadamente nas audiências
públicas dos julgamentos, bem como a exposição pública dos fundamentos das
decisões para que o serviço da administração da justiça prestado aos cidadãos
seja passível de ser objecto de controlo dos cidadãos para a avaliação da sua
qualidade, rigor, tempestividade e, sobretudo, da justiça rendida em cada caso.
Esta seria, nalguma medida, também um fundamento legitimador da decisão
proferida, senão do próprio exercício da função de dizer o direito no (do) caso
concreto.
Respeitar as instituições significa que
os servidores da justiça, em função das suas missões e funções
constitucionalmente especificadas, devem assumir de forma plena os deveres e os
ónus dos cargos, com a reserva e a dignidade associadas, exercer todos os
poderes-funções necessários para a realização da justiça, sempre na salvaguarda
e protecção dos direitos fundamentais (não pode continuar a prática, levada a
cabo desde há muitos anos, de magistrados do MP a exercerem a função de directores
de estabelecimentos prisionais, prática incompatível com princípios
constitucionais; aconselhável se mostra , no contexto estatutário actual,
encontrar uma qualquer forma de representação institucional dos oficiais de
justiça).
Mas respeitar e credibilizar as
instituições importa construir um sistema que, no seu todo, se responsabiliza –
no seu funcionamento e nos seus resultados – perante a comunidade dos cidadãos.
Excelências, Minhas Senhoras e meus
Senhores,
Não é alheia a esta ideia-chave – que,
de alguma forma, surge recortada no relatório do CSM caracterizada como «uma
nova cultura judiciária da responsabilidade» - a questão da famigerada
morosidade da Justiça, central no nosso sistema judicial, estando ela ligada a
uma complexa e diversificada teia de factores já devidamente diagnosticada e
estudada entre nós, incluindo com indicação precisa de recomendações.
A morosidade deveria ser combatida nas
suas causas entrelaçadas e inter-actuantes, agindo-se, sempre que possível,
sobre elas em simultâneo.
Sem preocupação de minúcias descabidas
neste momento, questões como uma maior capacitação técnica de todos os agentes
da justiça (magistrados, advogados, oficiais de justiça), criação de
verdadeiros e autónomos serviços de inspecção (para o que urge a aprovação de
legislação específica, consoante, aliás, se defende na agenda da reforma da
justiça), enfim, mecanismos de responsabilização do sistema no seu todo que,
naturalmente, não se confundam com preterição de princípios basilares do estado
de direito como os da independência do poder judicial e dos juízes, da
irresponsabilidade destes pelo teor de suas decisões e da autonomia do
Ministério Público, deverão ser enfrentadas com coragem política, mesmo que
tenham de ser vencidas eventuais e desajustadas resistências corporativas.
Outras apostas seriam o
investimento nos meios alternativos de resolução de conflitos: a arbitragem e a
mediação, a instituição do Provedor de Justiça como ferramenta de tutela
graciosa complementar à tutela contenciosa dos direitos fundamentais; o recurso
mais frequente dos processos especiais para combater a pequena criminalidade,
superados os condicionalismos, de atitude ou inclusivamente de articulação
institucional, que vêm diminuindo uma sua utilização (como se refere
designadamente no relatório do CSMP; o investimento em meios que potenciem um
melhor desempenho na obtenção de provas e na investigação criminal, e, em
geral, nas polícias de investigação criminal; a instalação de secretarias
autónomas em muitas Procuradorias da República, o aumento de número de
magistrados do M.P e de oficiais de justiça, nomeadamente de oficiais de
diligência (uma sua formação); a especialização crescente nos tribunais, nas
procuradorias e na advocacia.
Não se pode olvidar igualmente a
necessidade de atender a meios de combate ao tempo irrazoável nas decisões e
procedimentos judiciários, em nome do crescimento económico, do reforço da
competitividade das empresas e do incremento do emprego, ou, ainda, da paz
social, atenuando-se tendencialmente as possibilidades de comportamentos
desviantes ou que lesam interesses de terceiros, favorecidos ou potenciados
pela crença no mau funcionamento ou ineficiência do sistema e instituições da
justiça.
Mas Excelências, minhas Senhoras e meus
Senhores,
A morosidade não é exclusivamente um
problema intra-sistema judicial, pois que tem uma forte componente a montante –
o grau de litigiosidade reinante. Quando existe uma predisposição para a
ilegalidade ou a ilicitude de condutas, quando o automobilista na estrada, para
evitar o incómodo do quebra mola, invade outra faixa de rodagem ou prefere
mesmo sair por momento da estrada, quando não existe um esforço para uma
caminhada de mais vinte e cinco metros para o caixote de lixo, quando o morador
faz da sua residência o que bem lhe apetecer, sem ter em conta a habitação
contígua, quando as empresas decidem sem ter em conta as leis de trabalho ou
quando o dirigente da administração pública decide no pressuposto de que o
lesado contra ela não reagirá judicialmente, então, sim, torna-se muito difícil
combater a morosidade. Os valores (ou desvalores) que estamos a cultivar, na
família, na escola, no trabalho e nossa comunidade aumentam em grande medida o
grau de litigiosidade, dificultando a resposta do sistema. Daí a importância de
uma cultura da legalidade, tanto da parte dos cidadãos, empresas e autoridades
públicas, a par da procura de reposição de uma nova cultura de valores, de
respeito, de tolerância, de liberdade e de responsabilidade. Aqui, o Estado, os
parceiros sociais, as escolas, os municípios, as comunidades e a comunicação
social podem desempenhar um papel relevante. O que todos nós pretendemos: é que
haja também um controlo social dos actos lesivos dos direitos e interesses legítimos.
Só esse controlo social pode ajudar na resposta mais eficaz do sistema
judicial.
Excelências,
Estamos de acordo com a observação
contida no relatório do CSM, na parte em que salienta o papel que deverá caber
aos organismos de gestão das magistraturas, seja na efectiva adopção de novos
modelos de gestão e de planeamento, seja na criação da tal cultura
responsabilizante. Para tanto mister se torna rapidamente vencer os obstáculos
e condicionalismos (recomposição dos órgãos, instalação dos serviços) que ainda
levam a uma situação de prolongada transitoriedade de tais organismos, para se
chegar finalmente à elaboração de planos estratégicos plurianuais, com
objectivos definidos em função de um diagnóstico criterioso da situação dos
tribunais, de cada um dos tribunais, de forma a se poder estabelecer mecanismos
eficientes e adequados de intervenção e de resolução das disfunções que têm
sido detectadas em alguns deles, designadamente no que se refere ao tempo das
decisões.
Devemos, aliás, dizer com clareza que as
mais recentes alterações legislativas nesta área da justiça - que,
confessemo-lo, consubstanciaram a reforma possível no contexto político em que
foi levada a cabo – se tiveram em conta as insuficiências disfunções atrás
mencionadas, não puderam ainda ter plena efectivação, seja, nuns casos por
ausência de desenvolvimento legal ou regulamentar, seja por falta de alocação
de meios e recursos para a sua aplicação. É necessário criar as condições para
tanto, sob pena de a reforma esboçada não produzir relevantes efeitos na
funcionalidade do sistema no seu todo ou de ter nele um impacto positivo pouco
significativo.
Ilustres autoridades da República,
Minhas Senhoras e meus senhores,
Outra questão de suma importância que
gostaria de sublinhar nesta ocasião é a da função da Justiça na protecção dos
Direitos Fundamentais. Cabe ao sistema de justiça um papel central na
efectivação desse pilar estruturante do nosso Estado de Direito Democrático de
cariz social em função da sua capacidade de materialização das declarações
constitucionais de direitos em realidades concretas por meio da intervenção dos
tribunais e de outros intervenientes processuais na sua tutela efectiva.
Daí a importância da concretização do
direito de acesso à justiça nos termos constitucionais para que as pessoas
tenham respostas céleres, justas e adequadas às suas demandas, para que o
Direito e os direitos sejam conhecidos e, sobretudo, para que a Justiça não
seja denegada por falta de meios económicos suficientes.
Para isso,
torna-se necessário que, independentemente da sua situação económica, todos os
arguidos, como, aliás, todas as vítimas, possam ter o patrocínio de advogado,
experiente e empenhado. É urgente reflectir nas soluções, ensaiadas com a
melhor das boas vontades é certo, mas que têm provado mal, e constituído motivo
para formas agenciadas de exercício da advocacia, que devem ser reprovadas.
Neste sentido, é preciso aprimorar o
sistema de assistência judiciária, reforçar o fundo a ela reservado e criar
condições mínimas para que os advogados possam defender de forma adequada os
interesses legítimos de todos os nossos conterrâneos que recorram ao sistema de
justiça, exigindo-se, por sua vez, dos causídicos consciência do serviço
público e obediência deontológica ao proteger os interesses legítimos dos mais
desfavorecidos. Não haverá Justiça no sentido mais estrito da palavra, aquele
decantado por moralistas e juristas, se aos desvalidos da nossa sociedade, para
além de colocados à margem da fruição dos bens comunitariamente gerados, também
seja denegado ou dificultado o acesso aos tribunais para concretizarem os seus
direitos.
Senhor Presidente do STJ, Senhor
Ministro, Senhor PGR, Senhora Bastonária em substituição,
Excelências,
É meu dever insistir com a necessidade
de os partidos políticos com assento parlamentar encontrarem os consensos
necessários para a instalação de duas instituições essenciais para a tutela dos
direitos fundamentais e para a defesa da Constituição, o Tribunal Constitucional
e a Provedoria de Justiça.
Não é uma prática desejável nem exemplar
que exigências constitucionais tão precisas estiolem com atitudes omissivas ou
de indiferença de poderes e responsáveis políticos, a quem cabe, em primeira
linha, a tarefa de respeitar e fazer respeitar a Constituição e de a realizar
com efectividade.
Sublinhe-se, no entanto, que será
imperioso para a sua solidez que sejam dotadas dos meios financeiros, técnicos
e materiais necessários para o desempenho adequado da sua missão e, sobretudo,
de juízes que encarnem o espírito da Constituição de imparcialidade face aos
poderes públicos e interesses político-partidários, reputação ilibada, senso de
justiça, notório saber jurídico e, sobretudo, vontade para defender a
Constituição e realizar os Direitos Fundamentais.
Não há quaisquer justificações para mais
atrasos que apenas viriam representar um acréscimo de descredibilização do
nosso sistema constitucional e de enfraquecimento de «vontade de constituição».
Senhor Presidente do STJ, Excelências,
Dirão ou pensarão alguns que as
considerações aqui feitas extravasam o quadro de competências do Presidente da
República no âmbito da justiça (ou noutras áreas em que tem vindo a
pronunciar-se). Não nos parece que estejamos a invadir o âmbito de competências
de outrem, a quem cabe constitucionalmente definir e executar a política
interna do país, mas que estamos ainda nos limites estabelecidos pela
racionalidade subjacente ao comando constitucional que obriga a que o Chefe de
Estado seja e esteja informado, completamente, sobre os assuntos
relativos à política interna. Propor, ter ideias, acompanhar, sugerir, avaliar,
debater, nomeadamente com a sociedade e os seus diferentes segmentos, mas
também com o governo, se necessário criticar, nada que não possa ser
configurado como o exercício da chamada magistratura de influência que cabe
indiscutivelmente ao Presidente no nosso sistema de governo.
E que todos contem com a contínua,
paciente e firme postura do Presidente, imune a limitações e condicionamentos ilegítimos.
No exercício do mandato que me foi conferido serei sempre um Presidente atento
às questões da Justiça, mantendo um contacto directo e permanente com os
representantes institucionais dos seus vários agentes e responsáveis, das
magistraturas às polícias, dos advogados aos guardas prisionais. A todos e cada
um deles ofereço aqui, agora e sempre, a minha solidariedade institucional, e
testemunho vivamente o apreço do Chefe de Estado pela nobre e exigente função
que a cada dia procuram – seguramente a grande maioria - desempenhar com
espírito de missão e profissionalismo. A todos vós desejo um muito bom ano
judicial 2011-2012.
Para terminar e, na pessoa do
Excelentíssimo senhor Presidente da CMSC e de outros ilustres eleitos
municipais, endereço a todos os santacruzenses os votos de sempre melhores
dias, progresso e bem-estar material e espiritual.
Muito obrigado!
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