sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Discurso proferido por Sua Excelência o Presidente da República, na sessão Solene de Abertura do Ano Judicial, Sexta-feira 14 de Outubro de 2011


Excelências,

Esta é a primeira vez que na qualidade de Presidente da República presido a uma sessão solene de abertura do ano judicial e me dirijo as vossas Excelências, Senhores Magistrados Judiciais e do Ministério Público, Senhores Advogados, Senhores Oficiais de Justiça, vós que sois a imagem primeira da Justiça. 

É um momento único que se renova todos os anos e que não deve constituir um mero ritual, mas deve ser aproveitado para reflectir sobre a Justiça que temos, os ganhos obtidos, os obstáculos que se mantêm e perspectivar novos caminhos nesta busca permanente por uma Justiça que sirva a todos por igual, em tempo oportuno e com qualidade.

Há quem afirme que a Justiça não é servida ou administrada no abstracto. A Justiça seria administrada e realizada em cada caso concreto e particular de que o juiz é obrigado a ocupar-se e inscreve-se na solução do litígio que ele tem, por missão e por função, de resolver. Pelo menos, estaríamos de acordo, no sentido das palavras de Aristóteles, em como haveria «um justo superior, embora sendo o mesmo que o justo». Esta actividade do juiz assume a forma num processo judicial, pelo que o processo é o lugar, o momento e o modo da solução do litígio e no qual a Justiça pode expressar-se, revelar-se. Compreende-se, por isso, a necessidade das reformas processuais para que a Justiça esteja conforme aos valores constitucionais e corresponda à expectativa dos cidadãos.

A Justiça ou a falta dela é reflectida e sentida no quotidiano de cada um dos nossos cidadãos ao se confrontarem com a procura, junto dos tribunais, de uma solução para um conflito social, mais ou menos grave; tanto na humilde senhora que, vítima da violência doméstica, não consegue, pese a existência de várias decisões judiciais, que o agressor seja afastado da casa de morada de família e os bens comuns sejam partilhados e retomar a sua vida, como naquela outra, que tendo ganho uma acção contra o Estado, não consegue obter a execução da sentença para ser indemnizada e ver restaurados os seus direitos ou na vítima de um crime violento que recorrendo aos tribunais vê que o processo nunca é instruído e, muito menos, julgado ou, ainda, daquela pessoa que é detida e vê a prisão preventiva sucessivamente prolongada por alegada complexidade e sem vislumbrar o dia de julgamento.

O processo só tem significado através de um julgamento definitivo que marca o seu termo e, por isso, a função de julgar reveste-se da maior relevância na nossa sociedade e para cada cidadão que se confronta com a justiça.

Os juízes (e poderíamos, com adaptações, referir-nos a outros operadores da justiça) devem, por isso, estar preparados científica, técnica e humanamente para a função de julgar, não bastando a mera frequência de estágios ou institutos de formação, mas a segura disponibilidade pessoal para o rigor e o método, a dedicação à causa pública e o bom senso para incarnarem a qualidade de servidores da justiça. O juiz não é um funcionário, mas titular de um órgão de soberania e que não deve ter preocupações de “intendência” sindical.

A justiça tem a ver também com as instituições e com a percepção da sua representação pelos cidadãos. O que muitas chamamos representações colectivas. Tem, neste âmbito, razão o relatório do CSM quando nos diz que «… quaisquer que sejam as dificuldades em definir critérios de análise da performance do sistema de justiça, maxime dos tribunais, há dados que, empiricamente que seja, revelam uma situação de défice da prestação jurisdicional. Está-se a referir, por um lado, a percepção da sociedade que, de um modo geral, considera o sistema judicial bastante ineficiente, e, por outro, as taxas de pendência e congestionamento que registam, em muitos casos, curvas crescentes».

Sem decisões reconhecidamente justas, sem uma justiça que gere confiança na comunidade, com a celeridade desejável e adequada à afirmação de outros valores que o sistema também deve proteger e afirmar, e acessível aos cidadãos, a coesão social e o sistema de crenças no ideário democrático ficam abalados.

Minhas Senhoras, meus Senhores,

A justiça necessita de instituições fortes, credíveis e respeitadas.
A força e a credibilidade das instituições do sector da justiça só são adquiridas quando o seu funcionamento for representado pelos cidadãos como sendo em tempo útil e oportuno, havendo um bom desempenho com um razoável nível de resolução dos conflitos e uma capacidade de intervenção rápida para responder aos problemas sociais que são transpostos para o sistema de justiça, um elevado padrão de rigor e qualidade das decisões e um atendimento crescente aos direitos antigos e novos que reclamam protecção e defesa.

Tenho sempre defendido a necessidade uma formação contínua dos agentes da Justiça, dos magistrados Judiciais e do Ministério Público, dos Advogados e dos Oficiais de justiça.

Os servidores da justiça, todos sem distinção, devem beneficiar de uma formação sólida organizada, assegurada ou apoiada pelo Estado, para se poder ter em todos os sectores profissionais competentes, diligentes e cientes dos seus deveres e direitos e que possam garantir uma justiça qualitativamente boa e prestada em tempo e assegurar níveis de desempenho indispensáveis à pacificação social.

Mas para a realização da Justiça é também necessário dotar as suas instituições de meios necessários. Meios materiais, instalações e recursos humanos. A dignidade das instituições da República exige que as mesmas sejam dotadas de espaços físicos condignos ao exercício das funções e à imagem que delas tem o ideário colectivo.

A lógica da racionalidade económica não pode, por exemplo, impedir a aplicação efectiva da lei processual penal por não se dispor de uma sala para instalação das sessões de recurso ou o funcionamento da justiça constitucional por se entender que é dispendiosa, ou o adiamento da instalação dos tribunais da Relação.

Respeitar as instituições significa a compenetração de todos os servidores da justiça (todos, sem excepção, previstos na Constituição e com a mesma dignidade) que são parceiros e comparticipantes necessários para a construção da justiça num Estado de Direito democrático, com funções e missões diferentes é certo, mas todos portadores dos valores da Justiça e necessários para a preservação do modelo de justiça previsto na Constituição. Respeitar as instituições significa a transparência de procedimentos e do funcionamento da justiça, nomeadamente nas audiências públicas dos julgamentos, bem como a exposição pública dos fundamentos das decisões para que o serviço da administração da justiça prestado aos cidadãos seja passível de ser objecto de controlo dos cidadãos para a avaliação da sua qualidade, rigor, tempestividade e, sobretudo, da justiça rendida em cada caso. Esta seria, nalguma medida, também um fundamento legitimador da decisão proferida, senão do próprio exercício da função de dizer o direito no (do) caso concreto.

Respeitar as instituições significa que os servidores da justiça, em função das suas missões e funções constitucionalmente especificadas, devem assumir de forma plena os deveres e os ónus dos cargos, com a reserva e a dignidade associadas, exercer todos os poderes-funções necessários para a realização da justiça, sempre na salvaguarda e protecção dos direitos fundamentais (não pode continuar a prática, levada a cabo desde há muitos anos, de magistrados do MP a exercerem a função de directores de estabelecimentos prisionais, prática incompatível com princípios constitucionais; aconselhável se mostra , no contexto estatutário actual, encontrar uma qualquer forma de representação institucional dos oficiais de justiça).

Mas respeitar e credibilizar as instituições importa construir um sistema que, no seu todo, se responsabiliza – no seu funcionamento e nos seus resultados – perante a comunidade dos cidadãos.

Excelências, Minhas Senhoras e meus Senhores,

Não é alheia a esta ideia-chave – que, de alguma forma, surge recortada no relatório do CSM caracterizada como «uma nova cultura judiciária da responsabilidade» - a questão da famigerada morosidade da Justiça, central no nosso sistema judicial, estando ela ligada a uma complexa e diversificada teia de factores já devidamente diagnosticada e estudada entre nós, incluindo com indicação precisa de recomendações.

A morosidade deveria ser combatida nas suas causas entrelaçadas e inter-actuantes, agindo-se, sempre que possível, sobre elas em simultâneo.

Sem preocupação de minúcias descabidas neste momento, questões como uma maior capacitação técnica de todos os agentes da justiça (magistrados, advogados, oficiais de justiça), criação de verdadeiros e autónomos serviços de inspecção (para o que urge a aprovação de legislação específica, consoante, aliás, se defende na agenda da reforma da justiça), enfim, mecanismos de responsabilização do sistema no seu todo que, naturalmente, não se confundam com preterição de princípios basilares do estado de direito como os da independência do poder judicial e dos juízes, da irresponsabilidade destes pelo teor de suas decisões e da autonomia do Ministério Público, deverão ser enfrentadas com coragem política, mesmo que tenham de ser vencidas eventuais e desajustadas resistências corporativas.

Outras apostas seriam o investimento nos meios alternativos de resolução de conflitos: a arbitragem e a mediação, a instituição do Provedor de Justiça como ferramenta de tutela graciosa complementar à tutela contenciosa dos direitos fundamentais; o recurso mais frequente dos processos especiais para combater a pequena criminalidade, superados os condicionalismos, de atitude ou inclusivamente de articulação institucional, que vêm diminuindo uma sua utilização (como se refere designadamente no relatório do CSMP; o investimento em meios que potenciem um melhor desempenho na obtenção de provas e na investigação criminal, e, em geral, nas polícias de investigação criminal; a instalação de secretarias autónomas em muitas Procuradorias da República, o aumento de número de magistrados do M.P e de oficiais de justiça, nomeadamente de oficiais de diligência (uma sua formação); a especialização crescente nos tribunais, nas procuradorias e na advocacia.

Não se pode olvidar igualmente a necessidade de atender a meios de combate ao tempo irrazoável nas decisões e procedimentos judiciários, em nome do crescimento económico, do reforço da competitividade das empresas e do incremento do emprego, ou, ainda, da paz social, atenuando-se tendencialmente as possibilidades de comportamentos desviantes ou que lesam interesses de terceiros, favorecidos ou potenciados pela crença no mau funcionamento ou ineficiência do sistema e instituições da justiça.

Mas Excelências, minhas Senhoras e meus Senhores,

A morosidade não é exclusivamente um problema intra-sistema judicial, pois que tem uma forte componente a montante – o grau de litigiosidade reinante. Quando existe uma predisposição para a ilegalidade ou a ilicitude de condutas, quando o automobilista na estrada, para evitar o incómodo do quebra mola, invade outra faixa de rodagem ou prefere mesmo sair por momento da estrada, quando não existe um esforço para uma caminhada de mais vinte e cinco metros para o caixote de lixo, quando o morador faz da sua residência o que bem lhe apetecer, sem ter em conta a habitação contígua, quando as empresas decidem sem ter em conta as leis de trabalho ou quando o dirigente da administração pública decide no pressuposto de que o lesado contra ela não reagirá judicialmente, então, sim, torna-se muito difícil combater a morosidade. Os valores (ou desvalores) que estamos a cultivar, na família, na escola, no trabalho e nossa comunidade aumentam em grande medida o grau de litigiosidade, dificultando a resposta do sistema. Daí a importância de uma cultura da legalidade, tanto da parte dos cidadãos, empresas e autoridades públicas, a par da procura de reposição de uma nova cultura de valores, de respeito, de tolerância, de liberdade e de responsabilidade. Aqui, o Estado, os parceiros sociais, as escolas, os municípios, as comunidades e a comunicação social podem desempenhar um papel relevante. O que todos nós pretendemos: é que haja também um controlo social dos actos lesivos dos direitos e interesses legítimos. Só esse controlo social pode ajudar na resposta mais eficaz do sistema judicial.

Excelências,

Estamos de acordo com a observação contida no relatório do CSM, na parte em que salienta o papel que deverá caber aos organismos de gestão das magistraturas, seja na efectiva adopção de novos modelos de gestão e de planeamento, seja na criação da tal cultura responsabilizante. Para tanto mister se torna rapidamente vencer os obstáculos e condicionalismos (recomposição dos órgãos, instalação dos serviços) que ainda levam a uma situação de prolongada transitoriedade de tais organismos, para se chegar finalmente à elaboração de planos estratégicos plurianuais, com objectivos definidos em função de um diagnóstico criterioso da situação dos tribunais, de cada um dos tribunais, de forma a se poder estabelecer mecanismos eficientes e adequados de intervenção e de resolução das disfunções que têm sido detectadas em alguns deles, designadamente no que se refere ao tempo das decisões. 

Devemos, aliás, dizer com clareza que as mais recentes alterações legislativas nesta área da justiça - que, confessemo-lo, consubstanciaram a reforma possível no contexto político em que foi levada a cabo – se tiveram em conta as insuficiências disfunções atrás mencionadas, não puderam ainda ter plena efectivação, seja, nuns casos por ausência de desenvolvimento legal ou regulamentar, seja por falta de alocação de meios e recursos para a sua aplicação. É necessário criar as condições para tanto, sob pena de a reforma esboçada não produzir relevantes efeitos na funcionalidade do sistema no seu todo ou de ter nele um impacto positivo pouco significativo.

Ilustres autoridades da República,

Minhas Senhoras e meus senhores,

Outra questão de suma importância que gostaria de sublinhar nesta ocasião é a da função da Justiça na protecção dos Direitos Fundamentais. Cabe ao sistema de justiça um papel central na efectivação desse pilar estruturante do nosso Estado de Direito Democrático de cariz social em função da sua capacidade de materialização das declarações constitucionais de direitos em realidades concretas por meio da intervenção dos tribunais e de outros intervenientes processuais na sua tutela efectiva.

Daí a importância da concretização do direito de acesso à justiça nos termos constitucionais para que as pessoas tenham respostas céleres, justas e adequadas às suas demandas, para que o Direito e os direitos sejam conhecidos e, sobretudo, para que a Justiça não seja denegada por falta de meios económicos suficientes.

Para isso, torna-se necessário que, independentemente da sua situação económica, todos os arguidos, como, aliás, todas as vítimas, possam ter o patrocínio de advogado, experiente e empenhado. É urgente reflectir nas soluções, ensaiadas com a melhor das boas vontades é certo, mas que têm provado mal, e constituído motivo para formas agenciadas de exercício da advocacia, que devem ser reprovadas.

Neste sentido, é preciso aprimorar o sistema de assistência judiciária, reforçar o fundo a ela reservado e criar condições mínimas para que os advogados possam defender de forma adequada os interesses legítimos de todos os nossos conterrâneos que recorram ao sistema de justiça, exigindo-se, por sua vez, dos causídicos consciência do serviço público e obediência deontológica ao proteger os interesses legítimos dos mais desfavorecidos. Não haverá Justiça no sentido mais estrito da palavra, aquele decantado por moralistas e juristas, se aos desvalidos da nossa sociedade, para além de colocados à margem da fruição dos bens comunitariamente gerados, também seja denegado ou dificultado o acesso aos tribunais para concretizarem os seus direitos. 

Senhor Presidente do STJ, Senhor Ministro, Senhor PGR, Senhora Bastonária em substituição,
Excelências,

É meu dever insistir com a necessidade de os partidos políticos com assento parlamentar encontrarem os consensos necessários para a instalação de duas instituições essenciais para a tutela dos direitos fundamentais e para a defesa da Constituição, o Tribunal Constitucional e a Provedoria de Justiça.

Não é uma prática desejável nem exemplar que exigências constitucionais tão precisas estiolem com atitudes omissivas ou de indiferença de poderes e responsáveis políticos, a quem cabe, em primeira linha, a tarefa de respeitar e fazer respeitar a Constituição e de a realizar com efectividade.

Sublinhe-se, no entanto, que será imperioso para a sua solidez que sejam dotadas dos meios financeiros, técnicos e materiais necessários para o desempenho adequado da sua missão e, sobretudo, de juízes que encarnem o espírito da Constituição de imparcialidade face aos poderes públicos e interesses político-partidários, reputação ilibada, senso de justiça, notório saber jurídico e, sobretudo, vontade para defender a Constituição e realizar os Direitos Fundamentais.  

Não há quaisquer justificações para mais atrasos que apenas viriam representar um acréscimo de descredibilização do nosso sistema constitucional e de enfraquecimento de «vontade de constituição».

Senhor Presidente do STJ, Excelências,

Dirão ou pensarão alguns que as considerações aqui feitas extravasam o quadro de competências do Presidente da República no âmbito da justiça (ou noutras áreas em que tem vindo a pronunciar-se). Não nos parece que estejamos a invadir o âmbito de competências de outrem, a quem cabe constitucionalmente definir e executar a política interna do país, mas que estamos ainda nos limites estabelecidos pela racionalidade subjacente ao comando constitucional que obriga a que o Chefe de Estado seja e esteja informado, completamente, sobre os assuntos relativos à política interna. Propor, ter ideias, acompanhar, sugerir, avaliar, debater, nomeadamente com a sociedade e os seus diferentes segmentos, mas também com o governo, se necessário criticar, nada que não possa ser configurado como o exercício da chamada magistratura de influência que cabe indiscutivelmente ao Presidente no nosso sistema de governo.

E que todos contem com a contínua, paciente e firme postura do Presidente, imune a limitações e condicionamentos ilegítimos. No exercício do mandato que me foi conferido serei sempre um Presidente atento às questões da Justiça, mantendo um contacto directo e permanente com os representantes institucionais dos seus vários agentes e responsáveis, das magistraturas às polícias, dos advogados aos guardas prisionais. A todos e cada um deles ofereço aqui, agora e sempre, a minha solidariedade institucional, e testemunho vivamente o apreço do Chefe de Estado pela nobre e exigente função que a cada dia procuram – seguramente a grande maioria - desempenhar com espírito de missão e profissionalismo. A todos vós desejo um muito bom ano judicial 2011-2012.

Para terminar e, na pessoa do Excelentíssimo senhor Presidente da CMSC e de outros ilustres eleitos municipais, endereço a todos os santacruzenses os votos de sempre melhores dias, progresso e bem-estar material e espiritual.

Muito obrigado!    

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