Comemora-se hoje, um pouco por todo o
Mundo, o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravatura e do Comércio
Transatlântico de Escravos.
A efeméride traz ao consciente memórias de
um tempo em que muitas relações de trabalho se baseavam em relações de força,
em que, de um lado estava o dono dos meios de produção e do capital e, de
outro, homens que eram propriedade de outros homens, reduzidos à condição de
meros instrumentos de produção. Imperava a lei do dono e a ausência de
quaisquer direitos por parte da força de trabalho.
Onde hoje é regra a relação de trabalho
regida por contrato e regulada por instrumentos jurídicos, nos tempos de então,
quem fosse apanhado na trama da escravatura, a única regra vigente era a
vontade e os interesses do dono do capital e dos meios de produção, de entre os
quais figuravam esses seres humanos.
Lembrar um tempo em que alguns homens eram
propriedade de seus semelhantes, em que, mais do que a sua força de trabalho,
eram forçados a entregar-se completamente – não escapando nem a prole – não
deve ser um mero exercício contemplativo ou de autocomiseração. O momento deve
ser utilizado para reflectir sobre as vítimas de um tal sistema de relações
sociais, mas também para esconjurar o retorno desse tipo de relações.
A história e a própria formação da Nação
cabo-verdiana estão estreitamente ligadas à escravatura. Como sabemos, Cabo
Verde foi um importante entreposto de onde mulheres e homens capturados no
continente africano e escamisados eram enviados para outras paragens,
nomeadamente para as Américas ou constituíam a base da pirâmide escravocrata.
A nossa cultura está impregnada pelas
diversas formas de resistência contra esse modo ignóbil de relacionamento
humano, no quadro de um regime colonial de longa duração e num cenário natural
muito pouco favorável.
Em boa medida o nosso modo de ser mergulha
as raízes nesse complexo que, durante séculos, conformou a nossa realidade
social, humana e geográfica.
Se, de um modo geral, conseguimos num
contexto extremamente adverso edificar, não sem contradições, a nossa
identidade, construir uma Nação aberta, permeável à permuta de valores e
culturas, no continente africano as consequências foram mais dramáticas.
A sangria humana que o tráfico foi para o
continente deixou marcas indeléveis, pois ele foi despojado de milhões de
pessoas no auge da sua força física, cultural e mental.
O sofrimento que o tráfico negreiro
provocou aos africanos não tem paralelo na história da humanidade. Se é facto
que a África, como outras parcelas do globo, conheceu a escravatura antes
do tráfico, a dimensão que essa tragédia assumiu quando organizada à escala
quase planetária, não tem qualquer comparação com o processo anterior.
Reflectir sobre o tráfico de escravos é
uma forma de homenagear as vítimas desse negócio cruel, dessa tragédia humana
mas não deve, ao lado do colonialismo, servir de justificação ou desculpa para
politicas actuais que não se estribam na liberdade, não favorecem a
democratização e o desenvolvimento de grandes parcelas do continente africano.
Contudo, tanto em África como noutras
paragens, é preciso estar vigilante, pois os contornos de uma moderna vaga de
escravatura não são tão lineares como nos tempos que já lá vão. É preciso estar
atento porque as relações de força de então continuam a ser reproduzidas
partindo de outros pressupostos. E é preciso ser solidário com aqueles de se
vêm privados dos seus direitos e sujeitos a regimes infames de servidão, para
que ninguém seja forçado a dar mais do que a sua força de trabalho.
Por isso, sobretudo, este dia deve ser
lembrado. Porque, sabe-se, a escravatura não é, de todo, um fenómeno
ultrapassado. Permanece, refuncionalizada, até aos nossos dias,
como uma realidade económica, social e humana, não obstante as abolições e a
Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 – cujo artigo 4º estipula
que «Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão.
Dados divulgados pela ONU informam-nos de
cerca de 2,5 milhões de pessoas, no mundo todo, nos países pobres e também nos
ricos, são vítimas anualmente de tráfico humano e de suas várias formas de
exploração, trabalho forçado ou prostituição.
Velar para que ninguém tire vantagens
ilícitas das debilidades ou falta de protecção do seu semelhante, subjugando-o
em uma relação iníqua, desigual e ilícita, é uma das formas de mostrarmos o
nosso respeito pela memória de quantos sucumbiram à violência da escravatura.
Para que as formas pelas quais ela tem subsistido sejam definitivamente
eliminadas e ela não volte nunca mais.
Mas a tarefa não é simples. Proliferam por
esse mundo afora relações que não levam o rótulo de escravatura mas que exploram
a mesma veia: a vulnerabilidade do semelhante e o descaso dos contemporâneos.
Há gente confinada a trabalhar, sem
documentos, sem contrato, sem alojamento, sem salário e sem direitos;
Há semelhantes nossos trabalhando para
pagar dívidas que advêm até das ferramentas e consumíveis que utilizam em
benefício do patrão, sem um horizonte de quitação e vigiados para não buscarem
a liberdade;
Há homens controlando outros homens,
explorando-os até à exaustão e negando-lhes o direito a se organizarem para
fazerem valer os seus direitos;
Há seres humanos - homens, mulheres e
crianças – sendo transportados em contentores metálicos sem ventilação, de
continente a continente, para serem vendidos a outros homens, para quem terão
de trabalhar para pagar os custos da viagem, sem direito a excussão, porque não
têm documentos, não conhecem a língua do país de destino, não conhecem ninguém.
A melhor forma de render preito de
homenagem à Memória das Vítimas da Escravatura e do Comércio Transatlântico de
Escravos é disponibilizarmo-nos para dar o nosso contributo à luta contra a
erradicação dos modernos esquemas de dominação do homem pelo homem e pelo
desenvolvimento inclusivo e pela democratização da África.
O dia de hoje deve, pois, ser momento de
defesa dos valores trazidos pelo projecto de uma sociedade moderna e emancipada
e de reflexão à voltado que devem ser a nossa atitude, postura e comportamento
face às informações que nos chegam sobre a escravatura dos tempos modernos.
Para que os Direitos Humanos sejam
escrupulosamente respeitados e para que os tempos de então nunca mais voltem.
VIVA A LIBERDADE!
HONRA À MEMÓRIA
DAS VÍTIMAS DA ESCRAVATURA E DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS
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