Excelentíssimo Senhor Presidente do STJ,
Excelentíssima Senhora Presidente do CSMJ,
Excelentíssimo Senhor PGR,
Excelentíssimo Senhor Bastonário da Ordem dos
Advogados,
A 25 de Setembro transacto a Constituição da
República completou 20 anos de vida. A sua aprovação e publicação são marcos
incontornáveis na história da nação cabo-verdiana.
A Constituição de 1992, com as suas revisões, deu já
sobejas provas da sua vitalidade e indispensabilidade e do seu profundo
enraizamento na realidade política e social cabo-verdiana. Em todos os momentos
da nossa história as soluções normativas adoptadas na Constituição da República
mostraram estar à altura dos acontecimentos, com respostas satisfatórias para
os problemas e desafios que enfrentámos. E essa é uma razão acrescida para se
exigir cada vez com maior rigor o respeito escrupuloso pelas suas normas.
Entre os direitos, liberdades e garantias
fundamentais consagrados na nossa Constituição encontra-se o acesso à Justiça
Hoje, mais do que nunca, as questões ligadas à
Justiça encontram-se na ordem do dia. São conversa normal dos cidadãos e
notícia ou comentário nos media. Por mais paradoxal que possa parecer, é
provável que este agudo sentimento de necessidade de Justiça não esteja no,
essencial, ligado aos debates sobre os constrangimentos de que padece o sector.
Arriscaria a dizer que este sentimento generalizado
da grande importância de que a Justiça se reveste para o cidadão comum é um
elemento que radica num aprofundamento de uma relação com a Justiça, que sempre
existiu entre nós, que, diríamos, impregna a nossa cultura.
O sentido de Justiça, a sua necessidade, é um dos
traços marcantes da nossa cultura.
Admito que a importância cada vez maior atribuída ao
sector, traduz o aprofundamento, ainda que difuso, da consciência de que ela é,
como tenho reiteradamente defendido, um dos esteios do regime democrático, ao
lado de uma imprensa independente e de uma sociedade civil consolidada e
interveniente.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Ignorar os esforços que têm sido feitos no sentido
de melhorar o nosso sistema de Justiça, não seria adequado. Os investimentos em
recursos físicos, humanos em equipamentos são visíveis.
Mas independentemente da correcção de tais apreciações
não podemos ignorar que a Justiça tem sido alvo de inúmeras críticas. Essa
Justiça que tem sido alvo de inúmeras críticas a ponto de ser por muitos
apelidada de “calcanhar de Aquiles” das sociedades modernas.
Não raras vezes assistimos a desabafos de cidadãos,
manifestando o seu descontentamento pelo facto do seu processo judicial não
andar, ou por causa da decisão judicial que manda restituir à liberdade o
individuo que, na sua visão, dá todas as mostras de ter cometido o crime de que
vem acusado. Por outro lado, escutamos, amiúde, lamentações dos agentes de
segurança e ordem pública face à não condenação do indivíduo que levaram às
barras do tribunal e foi posto em liberdade.
Mas, apesar de tudo, hoje devemos estar todos
orgulhosos do percurso que fizemos até aqui, desde a Independência a este ano
de 2012. Com muitos sacrifícios e perseverança conseguimos construir um sistema
de justiça muito mais eficiente do que aquele que existia na época colonial. Há
quem pense de forma contrária, que a justiça funcionava plenamente na época
colonial, mas ignorando um facto essencial: o acesso. O acesso à ajustiça era
muito limitado, pela escassez dos tribunais, pela quantidade de magistrados,
pela gritante insuficiência dos recursos e pela desmesurada ausência de
informação jurídica. Não se mostra minimamente comparável o número de pessoas
que procurava a justiça antes da Independência Nacional com o que se passa nos
nossos dias. Se é verdade que se pode dizer que o grau de litigiosidade é hoje
maior, também não é menos certo é que uma justiça mais próxima dos cidadãos num
mundo mais informado, incentiva a procura.
Todos, de uma forma ou outra, procuram hoje a
justiça. E hoje o acesso à justiça, apesar das dificuldades, é quantitativa e
qualitativamente várias vezes superior. Poucos concelhos do país não estão
dotados de aparelhos de justiça, com tribunal, Ministério Público, advogados e
oficiais de justiça. Estendemos o aparelho judiciário pelo país todo, salva
raras exceções, com instalações e jovens magistrados de muito mérito,
administrando justiça às nossas gentes.
Temos que realçar estes factos não só por razões de
justiça, mas também como incentivo para o caminho que falta percorrer.
Não ignoro, como Presidente da República, a escassez
dos recursos do país e, consequentemente, das necessidades sentidas pelos
Tribunais e pelo Ministério Público. Também sou sensível à insuficiência de
recursos para a assistência judiciária, na modalidade de patrocínio judiciário,
pois que franjas significativas da população cabo-verdiana enfrentam grandes
dificuldades na contratação de advogados para a defesa das suas causas, tanto
no domínio cível como criminal.
Cidadãos de ilhas e concelhos sem advogados ou com
muito poucos advogados que se têm deslocar aoutros concelhos ou mesmo ilhas em
busca de assistência técnica e sem recursos adequados. É um problema moral do
nosso tempo que precisamos de resolver, não obstante as reconhecidas
dificuldades do país, pois ele configura uma realidade que pode comprometer
todo o sistema, criando a convicção de uma Justiça a duas velocidades: uma para
os pobres e outra para os mais abastados. A esta questão tem de ser concedida a
maior prioridade. Na verdade, a persistência da situação actual é, de certa
forma, a negação prática da máxima segundo a qual a Justiça é igual para todos.
Apesar dos constrangimentos, vale a pena um esforço
financeiro adicional para dotar os Tribunais e o Ministério Público de meios
que lhes permitem assegurar a realização da justiça com um grau de eficiência e
eficácia razoáveis, compatíveis com as exigências do mundo moderno e do Estado
de Direito Democrático.
E a propósito dos recursos, queria aproveitar a
ocasião para pedir a atenção para um aspecto que me parece muito importante:
não vale a pena investir, construir edifícios, instalar equipamentos e
programas, novos procedimentos e circuitos, se não criarmos a capacidade de
manter, conservar, cuidar e acompanhar de forma sistemática. Quantos edifícios
novos se tornaram velhos em pouco tempo? Quantos equipamentos estão amontoados?
Quantos programas absolutamente inoperacionais? Quantos procedimentos deixaram
de ser executados? Esse é um grave problema da nossa administração pública.
Recursos avultados em equipamentos e tecnologias que rapidamente se transformam
em sucata! Não importa apenas ter o que queremos mas também o que devemos fazer
para manter o que queremos. Só vale apena o investimento quando tivermos
previamente criado a capacidade de conservar, de manter e de optimizar o
aproveitamento.
E isso implica três coisas fundamentais: formação,
recursos e responsabilização. Formar para saber utilizar, maximizar o
aproveitamento e conservar; recursos para manter e reparar; e responsabilizar
os utilizadores pelo desleixo e pela incúria. Somos pobres, temos maiores
dificuldades em adquirir coisas novas e por isso devemos ser mais exigentes.
Uma cultura de exigência é imposta pela nossa condição de país pobre mas
ousado, com ânsia de vencer os desafios do futuro. Infelizmente verificamos,
não raras vezes, investimentos inconsequentes, com morte aprazada, por falta de
projecção do futuro.
Hoje, mais do que nunca, e em todas as latitudes, a
sociedade exige uma maior eficiência do sistema. O ritmo de vida, a complexidade
dos problemas e as vulnerabilidades decorrentes de um mundo intensamente
competitivo, impõem uma qualidade e taxa de rendibilidade maiores ao conjunto
do aparelho judiciário, exigência feita também aos demais sectores da nossa
vida política, económica e social.
Na verdade, a substância da resposta deve ser
adequada à complexidade dos problemas de hoje e às expectativas do meio social
muito exigente. E isso é muito importante como facto de legitimação das
decisões. Convencer, mais do que vencer, é uma exigência constitucional imposta
a todos os decisores. E para isso, a investigação, o estudo, a formação e a especialização
constituem factores de importância vital. E com reflexos evidentes na própria
rentabilidade do sistema. Cabo Verde dispõe de magistrados jovens, numa grande
medida, o que é muito positivo, e com grandes potencialidades. Sérios,
empenhados e dedicados à causa da justiça, e por isso vale a pena um esforço
adicional por parte das autoridades nesta matéria de formação e especialização,
criando condições para um reforço do sistema de administração da justiça.
Senhora Presidente do CSMJ,
Senhor Presidente do STJ,
Senhor PGR,
Ao se falar da administração da justiça é
incontornável o problema da morosidade. Registamos com muito apreço o esforço
que vem sendo feito no sentido de minorar o problema. E sabemos que não é de
fácil solução, mas ela deve ser permanentemente procurada, até se encontrar um
nível razoável que seja compatível com as exigências da sociedade cabo-verdiana
e com imperativos constitucional e moral de Justiça.
A esse respeito, creio registar-se um consenso
alargado sobre a necessidade de se aumentar a produtividade, com melhor
organização e utilização de meios e com maior responsabilização daqueles que
deixem de observar certos padrões de exigências estabelecidos. É importante que
isso se faça, pois que o poder deve sempre implicar responsabilidade pelo seu
exercício, na forma e na substância.
Mas a morosidade a que particularmente queria fazer
hoje referência, como Presidente da República, é aquela que diz respeito aos
processos criminais de pequena e média gravidade. Os dados apontam para uma
morosidade que atingiu níveis absolutamente irrazoáveis. Na verdade o número de
pendências (5 236 processos crime pendentes nos tribunais de comarca,
acrescidos 99 no STJ,até 31 de Julho de 2012, e 62 466 – sessenta e dois mil,
quatrocentos e sessenta e seis processos pendentes no MP até 15 de Setembro de
2012), mostram que urge pôr cobro a esta situação, pois o risco de extinção dos
procedimentos criminais por prescrição é cada vez maior. O Estado não pode
permitir que, de forma sistemática, fiquem impunes muitos dos crimes contra o
património, a honra, a integridade física, a fé pública, a autoridade, a ordem
e tranquilidade públicas, crimes eleitorais… Não é aceitável e importa reverter
com urgência a situação. E, note-se, que estes processos têm um forte impacto no
sentimento de insegurança dos cidadãos. A ideia da impunidade, da ausência de
autoridade, o medo e a vontade de fazer justiça pelas próprias mãos, decorrem
muito desta insustentável situação dos processos crimes.
Não estamos nem de longe, nem de perto, ligados a uma qualquer concepção meramente funcionalista de um sistema penal, mas é mister aceitar-se que uma resposta oportuna, justa e adequada é condição fundamental para que se reitere permanentemente a confiança da comunidade –afinal, o destinatário das normas – na vigência e na validade das normas que editamos.
Não se pode pensar que o problema é de fácil
solução, e por isso todos nós somos obrigados a dar a nossa contribuição para
uma busca de solução, no quadros dos recursos disponíveis. O que todos sabemos
é que não podemos ter autoridades criminais que praticamente se ocupam apenas
de processos crimes com arguidos em prisão preventiva, por receio de libertação
por decurso do prazo. Na minha perspectiva como Presidente da República é hoje
o principal problema que enfrentamos e que devemos encarar de frente e com
muita urgência.
Na busca das soluções, temos, contudo, de evitar
soluções aparentemente fáceis, cómodas e eficazes, mas que – mesmo tendo em
conta experiências de outras latitudes – podem revelar-se ilusórias e
frustrantes. Designadamente, deve evitar-se a tentação da legislação «à flor da
pele» ou a «fuga em frente» para a lei Tenho, no entanto a convicção de que com
meios, organização e produtividade o problema certamente tem solução eficiente,
nos limites, naturalmente, de um Estado de direito e de democracia, estando o
Presidente da República disponível para dar o seu contributo nessa matéria.
O ano de 2013 vai ser um ano de grandes realizações
no domínio da justiça. É o ano da recomposição do Supremo tribunal de Justiça com
novas funções e dos Tribunais de Segunda Instância, soluções fixadas na revisão
constitucional de 2010. Cabo Verde foi ousado e procedeu a reformas inovadoras,
caminhando caminhos provavelmente nunca trilhados anteriormente. Pessoalmente
não conheço sistemas próximos que contenham soluções semelhantes. O futuro será
o melhor juiz da reforma encetada. Mas solidarizo-me inteiramente com as suas
ideias mestras. Ela tem o indiscutível mérito de buscar o reforço da
independência dos Tribunais, a autonomia da gestão das magistraturas e dos recursos,
o reforço do poder dos juízes, a qualificação do sistema e a celeridade dos
procedimentos. Devemos estar todos orgulhosos do trabalho feito, sem descurar a
necessidade de um acompanhamento permanente para se introduzir no futuro as
correcções que se vierem a mostrar necessárias.
E a aqui não posso deixar de fazer referência ao
problema da instalação do Tribunal Constitucional. Instituído pela
Constituição, regulado por lei, mas que ainda não passa das folhas do Boletim
Oficial. Impõe-se a todos os actores políticos a obrigação de concretizar a
Constituição da República, fazendo instalar com urgência o Tribunal
Constitucional, porque o país precisa e a Constituição da República o exige. Há
quem pense que o Tribunal Constitucional é dispensável, avançando até
argumentos de natureza financeira. Respeitamos todos os argumentos, mesmo
quando deles profundamente discordamos. Que um Tribunal, qualquer que ele seja,
um Ministério, um instituto ou Município, tem custos, já o sabemos, mas a
bondade da solução é sempre medida pela sua vantagem global.
As vantagens do Tribunal Constitucional justificam
claramente os custos do seu funcionamento, pois este é um Estado de Direito
Democrático, regime que deve ser assegurado, entre outras instituições, por um
papel activo do Tribunal Constitucional. Num país como o nosso, ainda com uma
fraca cultura de democracia e com uma insuficiente «vontade de constituição», o
funcionamento de uma jurisdição constitucional autónoma, com juízes
competentes, dedicados e independentes contribuirá seguramente para potenciar
uma tal cultura e para a realização progressiva dos valores da constituição,
vale dizer da democracia e do estado de direito. Experiências de outros países
– onde também existia uma larga tradição de «positivismo legal» - assim nos
ensinam.
Mas é ainda certo que, em caso algum, a opinião que possamos ter sobre a
utilidade do Tribunal Constitucional não pode legitimar a recusa em cumprir a
Constituição.
Como dizia há pouco, devemos estar orgulhosos do
caminho percorrido. E devemos melhorar as condições de sorte a maximizar o
sistema. E entre todos os actores do sistema, permitam-me destacar aqui os
magistrados, pela complexidade da tarefa, pela enorme responsabilidade da
função e pelos sacrifícios que impõe. Não existe qualquer alternativa aos
Tribunais, no quadro de um Estado de Direito Democrático, em matéria de
garantia efectiva de direitos dos cidadãos. É a lei dita pelos Tribunais que
governa as nossas vidas e só nesse sistema, com magistrados verdadeiramente
independentes, podemos confiar. O poder de submeter outros poderes ao direito
constituído é atribuição dos magistrados, através dos tribunais.
É uma função essencial, muitas vezes ingrata, e que
deve merecer o reconhecimento de todos. Fica aqui neste acto solene registada a
minha mais sincera homenagem.
Uma palavra de apreço para o trabalho
importantíssimo, muitas vezes invisível, porque discreto, dos oficiais de
justiça. A qualidade e eficiência da justiça assentam muito nessa função. A
quantidade e qualidade dos oficiais de justiça são factores incontornáveis no
diagnóstico do sistema e na avaliação dos resultados. São eles a dar suporte a
função jurisdicional e por isso gostaria de deixar aqui expresso o meu profundo
reconhecimento pelo trabalho que vêm desenvolvendo, não obstante as
dificuldades conhecidas por todos.
A função dos advogados é muito digna mas também muito
ingrata. O que acontece com mais frequência é confundir-se o advogado com a
causa que defende. Todos podem precisar um dia dos serviços de assistência de
um advogado, mas aqueles que julgam que não precisam e nem hão-de precisar, não
raras vezes desconsideram a função, coresponsabilizando os advogados por
alegados factos imputados aos seus clientes. Mas eles são parceiros na nossa
desgraça e uma voz de conforto quando mais precisamos. Não existe nenhum Estado
de Direito Democrático que tenha inventado uma alternativa a um sistema de
defesa confiado a advogados, livres e independentes. Aqui fica também a minha
homenagem.
A todos vós desejo um bom ano judicial 2012-2013.
Muito Obrigado.
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